As consequências dos resultados eleitorais
para o Parlamento Europeu, em Portugal, ainda estão na ordem do dia. Discutem-se,
em primeiro lugar, pelo lado mais fácil e mais apetecível para comentadores e
analistas de tudo e de coisa nenhuma, nos quais, vocês, leitores, até poderão
querer incluir-me. Mas discutem-se, em segundo lugar, e aí sim, com mais
substrato, na própria agenda política, com o habitual passa culpas entre a
crise da direita ou da esquerda ou do regime como um todo.
Dando de barato que os comentadores e
analistas vão sempre a reboque dos acontecimentos, limitando-se a um papel
reativo, importa refletir na outra vertente do problema, aquela que nos dê
esperança de mudarmos este estado de coisas.
A principal grande confusão que se
estabelece quando se pensa em tudo isto é entre os conceitos de “regime” e
“democracia”. É como confundir-se a estrada com a beira da estrada. O regime é
aquilo que é. Pode ser mais ou menos democrático, mais ou menos corrupto, pode
ser uma democratura, uma partidocracia, uma vígarocracia, eu sei lá. Até pode
ser ditatorial. O regime é a forma que a coisa assume, e por isso cada um gosta
do seu. Há-os para todos os gostos, mesmo que alguns nunca assumam aquele que
gostariam de ver por aí.
A democracia é uma coisa completamente
diferente. É como o ar que respiramos. Não tem cor, não tem cheiro, não tem
forma, não se vê. Ou pelo menos não deve. Mas está lá e sem ele ninguém vive. Do
mesmo modo, é a democracia, a sua quantidade, mas sobretudo a sua qualidade,
que define o regime. A democracia ou a falta dela é a substância de qualquer
regime, é ela ou a sua menor ou maior ausência quem lhe define a forma.
A democracia que temos, a representativa,
assente nos partidos, está podre. E é aí que está o principal problema, porque
ela deveria assentar, também, ou sobretudo, na cidadania. Sem cidadania não há
verdadeira democracia. E sem democracia verdadeira o regime torna-se naquilo
que vemos. Uma espécie de farsa, uma ópera bufa pendurada em formalismos e
encenações que nos empurram para um círculo vicioso de afastamento e alienação.
O que dizem de tudo isto as elites
pensantes e parasitárias? Preferem falar de regime! Preferem falar de crises da
direita, ou da não-crise da extrema-direita, ou mesmo da crise do regime como
um todo. Ou de qualquer outra coisa. Mas daquilo que não falam, e se puderem nem
deixam falar, é da essência da democracia, da cidadania, daquilo que está na
base de qualquer regime e nos tiraria da crise. E por quê?
Porque a cidadania vive de conceitos de
quem as elites são inimigas. Vive da transparência dos atos públicos, da
eficácia e da rapidez da Justiça, da ausência de corrupção, enfim, de todo um
universo de valores que, a existirem e predominarem, lhes acabariam com a
existência. As elites, para sobreviverem num mundo muito mais perfeito e justo
do que aquele que temos, teriam de ser excelentes. Teriam de ter qualidades
raras e quase divinas, uma espécie de bondade patriótica produtiva e
performadora de uma sociedade muito mais justa e feliz, qualidades que
justificassem que as aceitássemos.
Ora, as elites que temos são as que
conhecemos. Tentar reformá-las, é como querer ir a pé à lua. Eliminá-las,
exigiria um nível de violência para o qual não temos coragem. Adaptarmo-nos e
convivermos com elas, é a via do menor esforço. Por isso, vai ser sempre assim.
Vamos continuar a discutir a natureza do regime até as circunstâncias, aquilo a
que chamamos História, fazer qualquer coisa. Depois, as ondas de choque
esbater-se-ão e teremos outro regime qualquer. Com mais ou menos democracia.
Espera-se que com mais cidadania. Mas, olhando para o estado a que chegámos,
temo que já não seja no meu tempo. É que se alguns têm medo da mudança, eu
tenho é mesmo medo que isto nunca mude…
(Crónica jornal O Interior - 19 de Junho 2019)