A semana do carnaval é de folia, de cortejos, serpentinas e tudo o mais que um povo queira para esquecer os problemas do dia-a-dia.
Por cá, interior esquecido e abandonado, sucedem-se as feiras.....
São as feiras do queijo, das tradições e ...tudo mais que traga uns quantos ministros, secretários e outras forças a visitar tais certames.
Este ano, não houve ministros....a crise é muita e as portagens podem não ser bom motivo para saídas....apareceram uns secretários.....
Vieram eles e, vieram uns quantos adesivos que se colam de imediato a este tipo de iniciativas para «mamarem» uns quantos produtos regionais que são «sacados» aos produtores para gáudio da pelintragem que nos aparecem como moscas varejeiras.
Assim foi.....assim é....
É vê-los a abrirem as malas dos «brutos» carros, pagos com o nosso dinheiro, a serem cheias com os queijos, chouriços, presuntos, mel e outras iguarias para «pagarem» a visita de tal «individualidade» ao concelho, à região.
Vale tudo.....
Tudo começa com um «convite»...
Assim que o ministro da tutela despacha eis que o carro entra na auto-estrada a toda a velocidade, antes que o serviço seja alterado por qualquer motivo...
Ouvem-se os primeiros acordes d'A Portuguesa....logo no leitor de mp3 do «carrão»...convém.... para criar ambiente...
S.Ex.ª chegando à entrada da cidade, vila, aldeia ou lugarejo .... uma «salva» de morteiros anunciam a chegada do «respeitado» membro....
O entusiasmo redobra e....a Ex.ª apeia-se....
Então, dentre o povo apinhado, destaca-se um cavalheiro de sobretudo, de marca e chapéu alto, ladeado por vários chapéus altos e várias sobrecasacas de grilo.
É o presidente da câmara.....
Os bombeiros fazem parada......
Pedindo vénia, saca do bolso um volumoso rolo de papéis e..lê, durante meia hora, uma mensagem de boas-vindas em que também se apontam as mais urgentes necessidades do concelho e se faz a descrição da sua paisagem, situação geográfica, produção e costumes....
S. Ex.ª agradecendo e referindo-se à grave crise internacional, responde em breves palavras....
Todo o cortejo, depois, se dirige para a Câmara Municipal, através das ruas da vila e sob uma chuva de flores, colchas alcandoradas nas varandas, vasos floridos, ainda a pingarem água, pois foram regados momentos antes.
Na Câmara Municipal, o presidente, já sem o «embrulho» e, na presença de todos os vereadores, declara aberta a sessão e convida S. Ex.ª a ...presidir...numa sala, de nome de um figurante da campanha ultramarina, e cheia de convivas, convidados e outros artistas do circo e da fina flor do estrume....
Em seguida, feito silêncio pelo tossir do nobre camarista, este lê, durante três quartos de hora, uma segunda mensagem de boas-vindas em que se faz a história dos munícipes em Portugal, laboriosamente respingada em Marcelo Caetano e, interrompida, estrategicamente por uns «apoiado», «bravo» e...uns goles de água contidos em copos, harmoniosamente dispostos e tapados com um guardanapo, branco, bordado pela Dona Natividade mulher do presidente.....e que por sinal se encontra sentada na primeira fila com um chapéu repleto de fruta da região e colhida no jardim do secretário....
Seguem-se, no uso da palavra, mais cinco vereadores que, fazendo suas as palavras do digno presidente, aclaram, porém, alguns pontos confusos do professor de direito.
S. Ex.ª, citando a França, responde muito comovido e todos finalmente se dirigem para a sala dos passos perdidos, armada em bufete, onde o valoroso presidente da Câmara inicia a apresentação das «individualidades» presentes, com as respectivas esposas, o vigário na terra, as irmãs da caridade, as forças policiais e os bombeiros.
Iniciam-se os brindes, dando depois a palavra a todos os senhores vereadores que porventura não tiveram feito dela na sessão solene.
S. Ex.ª cada vez mais enternecido, agradece a sessão, o lunch e os brindes, num discurso demorado e profundo, em que faz a história da administração local em democracia, citando a Holanda e a Suíça.
Num entusiasmo indescritível, e no meio da aclamação do povo, todos se dirigem em seguida e sempre em cortejo, para a nova loja do cidadão.
Na «nova» loja, o zeloso oficial, pedindo a licença da praxe e protocolar lê, durante cinco quartos de hora, uma terceira mensagem de boas-vindas, em que enumera todas as vantagens da loja e do cartão do cidadão.
Na nova loja, S. Ex.ª, aludindo à União Europeia e ao Vaticano, agradece em breves mas eloquentes palavras e, durante uma hora, delicia a assistência com a história da Inquisição em Portugal e Espanha.
No fim, a criada do exemplar funcionário da loja começa a servir bolos da região, confeccionados pelas alunas do curso de culinária da escola profissional da vila, com os altos patrocínios da câmara.
Feita uma pausa, para deglutição dos bolos e do vinho fino, o ajudante do posto avançado chama a atenção de S. Ex.ª para os apoios prometidos pelo Ministério da Educação e nunca cumpridos.
S. Ex.ª, com extraordinária comoção e voraz apetite, agradece as palavras da loja e promete comunicá-las ao seu colega da Educação.
Todos depois se dirigem em cortejo, para o recinto da feira.
Uma forte ventania levanta as saias das damas, leva o chapéu de S. Ex.ª , destapa a careca do presidente da câmara, e faz girar os saiotes das irmãs da caridade que coram perante o sorriso do padre cura....
Com a poeira a entrar pelas narinas das individualidades eis que é «aberta» a feira...e, o sucedido é acompanhado por foguetes.....
Já no recinto da feira o intrépido presidente dos industriais lê durante hora e meia uma mensagem de boas-vindas, em que se descreve toda a história da agro-indústria da região, com especial ênfase à construção do parque industrial que não tendo indústria foi em boa hora alugada ao Zé da Burra para pastar o gado, com a licença da câmara...e com licença do S. Ex.ª.
Depois, a um sinal do professor da única escola existente no concelho, todas as outras encerraram, as crianças irrompem num hino alegórico a S. Ex.ª, composto expressamente pelo barbeiro da vila.
S. Ex.ª enternecido até às lágrimas, depois de beijar todas as crianças, afirmando-lhes, com originalidade e ternura, que são o futuro da pátria, responde ao valoroso mestre cerimónias e, serve-se pela terceira vez de mais bolos e mais vinho e chama a atenção de S. Ex.ª para a guerra no Oriente...
S. Ex.ª tocando na Áustria e afirmando que levará ao conhecimento do seu colega dos Estrangeiros as palavras do inteligente orador, percorrendo de seguida todos os stands da feira, sempre em cortejo e sem desânimos, entre novas mensagens de boas-vindas e sendo presenteado com todo o género de produtos que, o zeloso e sempre prestável secretário da presidência da câmara fazia transportar para o carro de S. Ex.ª.
Às seis da tarde, conforme o atraso previsto nestas e noutras circunstâncias, S. Ex.ª recolhe ao edifício do Governador, Civil, de cuja varanda volta a falar, mas com mais brilho e abundância, além de S. Ex.ª, o ilustre representante do Governo, o presidente da câmara, o oficial da Guarda, o comandante da polícia, o tesoureiro da paróquia, o chefe dos Correios, e outras individualidades quer de grupo quer de banda.
Às oito horas da tarde, e a convite da Irmandade da Juventude dos Polidores de Esquina, realiza S. Ex.ª uma conferência pública no salão popular e recreativo dos «amigos da pinga», sobre a obra do Governo e a literatura chinesa no século XI a.C., lendo também o soneto Grito d'Alma.
S. Ex.ª, porém, antes de começar, é apresentado pelo comissário local do seu partido, que do salão reservado e, com voz trémula e embargada, que os sete bagaços não conseguem disfarçar, agradece as grandiosas manifestações desse inolvidável dia de trabalho e de especial glória.
Principalmente de glória.
Não só para ele, S. Ex.ª, modesto e frágil, mas para a Democracia, soberana e grandiosa.
À luz dos archotes, o chefe das finanças lê ainda uma final e bem elaborada mensagem, em que se despede de S. Ex.ª, em nome do povo, dando depois, só em seu próprio nome, o sinal de partida de S. Ex.ª.
As aclamações redobram de intensidade.
E, enquanto os lenços são freneticamente agitados, as palmas estrugem e os vivas ribombam, o carro parte bem cheio, levantando uma nuvem de pó da estrada esburacada....
Na primeira área de serviço, porém, S. Ex.ª, ainda radiante e exausto, ao relancear distraidamente os olhos pela mala e ao descobrir os intactos volumes de produtos, vira-se para o ajudante, deixa pender os braços e exclama compungido, como lobo perdido na montanha:
- Lá me esqueci do desenvolvimento regional e das portagens!!
E feita uma pausa, com a cabeça erecta:
- Em todo o caso, meu fiel ajudante, que útil, que proveitoso dia!!!
Adaptação de Verborreia Nacional de Trindade Coelho.