quarta-feira, outubro 17, 2012

A Fé, os Padres, os Bispos e as Cunhas

Esta semana o difícil é escolher um tema, de tantos que há: crise política, tragédia social, esquizofrenia fiscal, Europa ou falta dela, Relvas e fundos comunitários, o feriado do 5 de outubro e as cenas tristes, um (in)seguro que não acerta o passo nem o compasso, a recessão, milhões de euros pedidos para pagar dívidas a perder de vista, fim das freguesias, sem consulta popular, etc.
No entanto, prefiro quedar-me por cá, pela Guarda, mais concretamente pelo hospital e pelos desmandos de quem o governa.
Naquela casa há de tudo: personagens que, tal como António Borges está para Passos Coelho, por ali vão gravitando, sem contrato, à volta de Ana Manso, fraturas profundas no Conselho de Administração, serviços clínicos sem direção nomeada, um hospital novo que apodrece, engenheiros em guerra, despedimentos sumários de trabalhadores incómodos, advertências a funcionários que são vistos em “más companhias”, o fantasma de Francisco Manso que teima em não desaparecer, agentes da Inspeção-geral da Saúde a passar tudo a pente fino, etc., etc., etc.
Há umas semanas, Ana Manso tentou, sem sucesso, obter junto da ARS do Centro autorização para renovar o contrato de uma certa funcionária. Vai daí, abespinhada pela nega, resolveu subir um degrau e bater à porta do secretário de estado.
Só que Ana Manso não se limitou à estafada cunha e à hipérbole dos méritos da funcionária. Aproveitou para zurzir forte e feio no malvado presidente da ARS que, por acaso, é o padre que nesta doutrina detém, por lei, a tutela que neste tipo de decisões nem sequer compete ao bispo. E fê-lo nestes termos: “… importa denotar que a ARS do Centro tem levantado todo o tipo de questões desprovidas de justificação bastante e insensíveis ao reconhecimento do mérito profissional, impedindo deste modo a renovação do Contrato Individual de Trabalho” (da funcionária).
E terminou desta forma: “… vimos pelo presente reiterar a continuidade da (funcionária) … solicitando para este efeito a intervenção de V. Exa.ª na justa e célere resolução do problema ora colocado.”
O verdadeiro problema surgiu quando “mão amiga” do Vaticano (diga-se: de Lisboa) fez chegar ao padre – o atraiçoado presidente da ARS - uma cópia da carta enviada por Ana Manso ao bispo. Por acaso até sei qual foi a reação do visado, mas não a posso revelar aqui por uma questão de pudor.
Mas a história não acaba aqui.
A mesma “mão amiga” fez ainda questão de espalhar a carta aos quatro ventos.
Os leitores, que ainda não desistiram, quererão saber se o secretário acabou por desautorizar o presidente da ARS Centro, dando seguimento à cunha e renovando o contrato à funcionária.
Pois para esta questão ainda não tenho resposta.
Como não tenho (não tenho?) para uma série de outras: não sei se a carta chegou efetivamente ao seu destinatário; não sei se foi intercetada por uma secretária zelosa que ficou com os cabelos em pé ao ler o parágrafo maldito; não sei se essa secretária zelosa telefonou de imediato a Ana Manso a rogar-lhe que fizesse desaparecer o parágrafo da desgraça; não sei se houve alguma tentativa para corrigir a carta, fabricando à pressa uma versão soft; não sei se passou a haver duas versões da mesma carta com diferentes números de saída do expediente; não sei se passou a haver três versões da carta, tal era a confusão de números de saída do expediente; não sei se Ana Manso se deslocou à pressa a Lisboa para tentar apagar o fogo; e não sei, finalmente, se a tentativa de desautorização do presidente da ARS Centro teve sucesso.
Esta história ilustra bem a natureza e os métodos utilizados pelas oligocracias que nos governam. Faz-nos bem saber que por trás do altar do poder, a triste realidade é bem o contrário do ambiente ético, impoluto e irrepreensível que nos tentam vender. Continua a ser feita de cunhas, de facadas nas costas e de uma suprema hipocrisia.
Em suma, eis a natureza humana à solta, oleada pela estonteante fragrância do poder.
Há gentinha para quem, como afirmou John Milton, em Paraíso Perdido, “É melhor reinar no inferno do que servir no céu.”…
 
(artigo publicado no jornal O Interior, em 11 de Outubro de 2012)