sábado, agosto 31, 2024

Crónica

A bufaria, a moral, a lata e o abismo


A delação é definida no Dicionário da Língua Portuguesa como i) acusação feita em segredo; ii) revelação de crime ou de falta cometida por outrem, geralmente feita com o fim de tirar proveitos dessa denúncia; iii) revelação de algo secreto, ignorado ou oculto.

O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa aplicou à Câmara Municipal de Lisboa uma multa de um milhão de euros devido ao envio para a embaixada russa, durante largos anos, de dados pessoais de organizadores – portugueses e estrangeiros – de ações avessas ao regime de Putin decorridas no município. Ao escândalo chamou-se “Russiagate”, epíteto minimalista, pois a Câmara enviava também dados do mesmo teor e, por razões similares, às embaixadas da Venezuela, da China e de Israel. Tudo feito no maior e mais profundo segredo durante o mandato, pelo menos ao que é dado saber, de Fernando Medina! De lembrar que em 2019, o gabinete de Fernando Medina admitia que «sempre que um país é visado pelo tema de uma manifestação, a sua representação diplomática é igualmente informada».

A 24 de junho de 2019 chegou à Câmara de Lisboa um pedido do Comité de Solidariedade com a Palestina para que pudesse ser realizada uma ação de sensibilização junto ao Coliseu dos Recreios, durante o concerto do cantor brasileiro Milton Nascimento. A intenção dos ativistas era tentar desmotivar o músico a tocar em Telavive quatro dias depois do concerto de Lisboa, algo que consideravam «legitimar o regime de “apartheid” de Israel». Como é normal neste tipo de ação, o grupo submeteu à autarquia o pedido de realização de uma concentração pacífica, onde iriam distribuir folhetos e falar com as pessoas que iam ao concerto. Quando a Câmara deu autorização para que a concentração se realizasse perceberam que a mensagem eletrónica – onde estavam os dados dos ativistas e eram explicitadas as motivações para a manifestação – tinha também sido partilhado com a Embaixada de Israel em Lisboa, apesar de a embaixada não ser o alvo da manifestação e de estar localizada a mais de dois quilómetros de distância do local do espetáculo. Na verdade, em todos os casos de delação da Câmara Municipal da Lisboa os ativistas denunciados foram completamente abandonados e expostos a perigos pela autarquia, pois muitos deles têm familiares nos países visados.

Estranhamente, ficou a saber-se que a partilha de dados pela Câmara de Lisboa acontecia desde a extinção dos governos civis, em 2011. Com o fim destes órgãos da administração pública foram as câmaras municipais que passaram a assumir a receção dos pedidos de manifestação por parte das entidades promotoras. Mas não ficaram obrigados a denunciarem os promotores a terceiros!

Quando foi confrontado com a ignomínia, Medina sacudiu a água do capote, tendo imolado um qualquer quadro médio camarário, feito “bode expiatório”. É tão fácil, entre tantos funcionários camarários, encontrar um atávico amanuense expiatório. Tão fácil. E a prática não é virgem!

O que mais impressiona nestes casos é o facto de as instituições públicas se mostrarem sistematicamente relutantes em prestarem contas ao cidadão que quer exercer o seu direito legal e legítimo de ser informado sobre a vida das mesmas. Perante poderes antidemocráticos, assassinos e covardes, os governantes portugueses curvam-se e, submissos, entregam a vida dos ativistas nas mãos de gente nada recomendável, recusando-se, até onde puderem, a prestar contas aos cidadãos do país. A isto, no tempo das ditaduras salazarista e marcelista, chamava-se “bufaria”. Medina, note-se que apenas porque as circunstâncias a isso o obrigaram, acabou por pedir desculpas pelo «erro lamentável» e adiantou que o procedimento já tinha sido alterado para evitar que uma situação idêntica voltasse a acontecer. Num mundo cada vez mais hipócrita e desprovido de valores tem-se a distinta lata de pedir às pessoas, sem qualquer estremecimento da consciência, que se perdoe a gente desta. Eu respondo: «Peçam-me tudo, menos que tape os olhos. Bem basta quando a terra nos cobrir!», como disse Miguel Torga. Tudo isto diz muito acerca do carácter de Medina. E diz ainda mais acerca da reserva moral de um país o facto de depois se ter permitido que ele fosse, nomeadamente, ministro das Finanças. A promoção política de gente que não respeita os mais elementares princípios morais representa o caminho mais rápido de qualquer sociedade para o abismo. Diz-me como ages, dir-te-ei o que vales!


Crónica Jornal O Interior - 18 Agosto, 2024.