sexta-feira, dezembro 09, 2022

Ponto de vista

A propósito do relatório de Outubro de 2022, do Observatório Nacional sobre a Pobreza e Exclusão Social em Portugal, lembrei-me da obra de Raúl Brandão intitulada «Os pobres».
Raúl Brandão começa por dizer que «toda a existência está assente na dor». É desta dor que falamos.
O relatório que referimos aponta para mais de dois milhões de trabalhadores em Portugal ganham entre 600 e 800 euros. Mas se considerarmos também os desempregados a taxa de pobreza ou exclusão social no seu global é de 22%.
A qualidade de vida das famílias está a deteriorar-se.
E há uma alerta que o governo ignora ou finge não entender. Já há instituições que não conseguem ajudar as famílias e há muitos pedidos sem resposta. Tudo devido ao aumento do número de cidadãos que procuram as instituições mas igualmente pelo aumento do custo dos alimentos necessários à confecção das refeições e do aumento da electricidade e do combustível que consomem.
Lembrar que este mesmo governo prometia em 2014, reduzir em 765 mil pobres até 2030.
Já o tínhamos ouvido e lido de um Marcelo quando anunciou que até 2023 todos os sem abrigo seriam retirados das ruas. Só promessas.
É a dor!
Mas a pobreza está a agravar-se desde 2020.
Há 4,4 mil milhões de cidadãos com rendimento abaixo dos 554 euros mensais. Isto sem apoios sociais. Com apoios sociais o número passa para 1,9 milhões de pessoas. Mas há um milhão a viver com menos de 250 euros por mês e dois milhões a viver com menos de 450 euros por mês. Os apoios que aí vêm são manifestamente insuficientes mas o governo atual, tendo conhecimento da situação não teve em conta esta realidade. Um dos motivos para a grave situação que milhões de portugueses estão a viver prende-se com a subida exorbitante dos juros dos empréstimos à compra de habitação.
Em matéria de créditos à habitação as questões ligadas ao incumprimento bancário foram hipocritamente mitigados através de um diploma governamental e promulgado por Marcelo. Chega-se ao cúmulo da hipocrisia de se escrever no site da Presidência da República que o diploma (Decreto-Lei n.º80-A/2022) tem como objetivo "aliviar" o crédito imobiliário.
Aliviar?
Mas que alívio?
O que os cidadãos podem esperar do diploma é o que já podiam esperar desde 2012. Ou seja, o mecanismo proposto prevê que os titulares de créditos à habitação e os bancos se sentem à mesa, analisem a situação e tentem encontrar uma solução. Ora sentar à mesa numa situação subalterna sem condições de negociar só beneficia quem impõe as regras: os agiotas.
Por outro lado, sabemos que a taxa de esforço [proporção entre o montante da prestação e o rendimento mensal] não deve ultrapassar os 36%, mas isso, por si só, não representa nada. É preciso perceber como é que os bancos vão aplicar a lei, pois são eles que definem as regras.
Lembrar ainda outro factor determinante da situação de pobreza de milhões de portugueses. Ficou-se a saber que no próximo ano, só 7% das empresas vão atualizar salários acima de 10%, de modo a compensar a perda de poder de compra decorrente da inflação esperada para este ano. Assim, a maioria das empresas vai aumentar salários muito abaixo da inflação imitando o que o governo fez para a Função Pública. Sem tirar nem pôr!
Prevê-se que 61% dos patrões não darão aumentos superiores a 5%. Ou seja, metade da inflação esperada por analistas sérios e descomprometidos com o homem do balde.
Mas, ironia das ironias os mesmos patrões que se recusam a aumentar os salários dos trabalhadores para compensar a inflação admitem mais contratações. São cerca de 82% das empresas. Não esquecendo que muitas das empresas com ordenados miseráveis estão no leque das que mais lucros obtiveram.
E que dizer da situação dos pensionistas?
Em 2021 os 1,6 milhões de pensionistas da Segurança Social recebiam uma pensão de velhice ou invalidez inferior ao salário mínimo nacional. Conclui-se que 72% dos pensionistas de velhice e 87% dos pensionistas de invalidez viviam com menos de 665 euros mensais, o valor do salário mínimo em 2021.
Voltemos à obra de Raúl Brandão e à pergunta que o autor nos faz. E passo a citar: «O que é a vida? Fui eu porventura que tracei este caminho doloroso para que todas as figuras me apareçam e interroguem? Estão aqui na minha frente os vivos e os mortos e não me largam. Somente os mortos não falam. Não é preciso! As fisionomias graves e cansadas contam-me a sua história. Basta olhar para os teus cabelos brancos para saber o que a vida fez de ti. Estas rugas são sulcos abertos pela lágrimas. À minha roda estão todos os que me deram um bocadinho de ternura e todos os que encontrei pelo caminho fora os mendigos das estradas, os velhos, os ladrões, as mulheres humildes e os que choram baixinho para que ninguém os ouça chorar. Os pobres são como os rios estancam a sede da terra, fazem inchar as raízes e crescer as árvores, acarretam e moem o pão dos moinhos. Ei-la a vida da Terra. Todas as catedrais se construiram da sua dor sem eles a vida pararia.» Fim de citação.
Leiam a obra de Raúl Brandão para melhor entenderem a dor que nos revolta.
Tenham uma boa semana.