Quando se comemorava mais um aniversário do 25 de Abril, eis que surge mais uma tentativa de apelar aos sentimentos dos Portugueses, quando a auto-estima e a esperança estão em níveis muito baixos.
Estas coisas nunca são por acaso.
Sobre a beatificação e o escandaloso aproveitamento de determinadas forças políticas, institucionais, governamentais, e os basbanas de sempre que gostam de ficar na fotografia de família, claro está, num País dito laico.
Recordei este texto publicado pelo Círculo de Leitores, em História da História de Portugal, secs. XIX-XX, de Luís Torgal, José Amado Mendes e Fernando Catroga, e que partilho com todos os que não querem nem gostam que lhes chamem asnos.
«O culto cívico que apela à superação em nome dos actos refundadores encontra-se no movimento da canonização do guerreiro Nuno Álvares Pereira.
O movimento já vem, é bom que se diga, desde o século XVII, mas renova-se e o Integralismo Lusitano elevou-o, convém também recordar, à categoria de Padroeiro da Nação.
Todo este movimento tendente ao desiderato anunciado porque alguns dirigentes republicanos defendiam uma cada vez maior aproximação com a Igreja.
Ontem como hoje as aproximações de e para a conveniência das instituições.
Em 1918 é mesmo fundada a Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira, agrupamento que se pretendia, como era de esperar e como convinha, apartidário.
Tinha como símbolo o próprio D. Nuno, como lema Pela Pátria!, e incitava todos os patriotas, atente-se na linguagem, a cerrarem «fileiras em torno do glorioso pendão das quinas, sem cores políticas, salvando Portugal da catástrofe iminente».
A Cruzada ir-se-á afirmar sob a República como um grupo político de pressão presidencialista, católico, nacionalista e conservador; depois será o movimento do 28 de Maio que o integrará e defenderá.
Assim, o Estado Novo assume a Cruzada com o apoio da Igreja. Não se discute a Pátria, a Família e a Igreja.
Para os «novos» cruzadistas o culto de D. Nuno e da Pátria constituía a base consensual em «que todos os patriotas» se deviam rever.
Mas, não se pense que a Cruzada se perdeu e nem tão pouco foi esquecida. Nem a Igreja esqueceu com todo o proselitismo, nem o calendário do culto, centrando-se em duas festividades, como convinha: a religiosa, solenizada anualmente no dia 6 de Novembro; e cívica, que tinha lugar a 14 de Agosto, aniversário da Batalha de Aljubarrota da padeira e dos castelhanos.
Em 1920, o Congresso da República aprovou mesmo uma lei que instituía 14 de Agosto como o dia da «Festa da Pátria» e mesmo feriado nacional, lei revogada em 1922.
Comulativamente com a Cruzada surge, com o mesmo objectivo mais um «movimento», em 1924, com a designação da Ala do Santo Condestável.
Aliás, o próprio Congresso da República institui a «Festa da Pátria» e aprovou a construção de um monumento, tendo a Cruzada tomado a iniciativa.
O monumento, no entanto, só será construído em 1966.
As várias apreciações a D. Nuno preparam o terreno para a integração do Condestável no Olimpo cívico dos Portugueses.
Assim, nesta conjuntura emergiram movimentos organizados para inocular na consciência colectiva a imagem segundo a qual o combatente de Aljubarrota era um herói-símbolo da Nação com uma estatura análoga à de Camões.
Levando em conta a conjuntura ideológica e política que condicionou o enraizamento do culto e ligando a sua justificação às que fundamentavam os actos comemorativos da época, vê-se que o animava uma intenção nacionalista apostada em o catolicizar mais claramente, como se a raiz jacobina dos cultos cívicos começasse a ser subsumida por interpretações mais tradicionais. Não admira. O Integralismo já tinha feito um positivismo contra-revolucionário à luz do qual deviam ser os mortos a governarem os vivos.
As consequências, por maiores que fossem as concessões da República, para os tradicionalistas esta seria sempre anti-histórica – porque individualista, democrática, religiosamente neutra e estrangeirada – e só uma Monarquia orgânica coorporativa e espiritualmente subordinada ao catolicismo podia realizar a missão inscrita na nossa história.
Nuno Álvares estava a ser desenhado por traços que o ajustavam à estratégia recatolicizadora da sociedade, em que, num registo mais popular e milagreiro , se inscrevem também as festas do centenário da morte de Santo António, pois, ao sintetizar a virtude militar que terá garantido a independência nacional com os posteriores votos religiosos, consubstanciava um ideal de rico significado educativo, nomeadamente quando, com as alterações políticas provocadas pelo golpe militar de 28 de Maio de 1926, se caminhou para uma nova aliança entre o Estado e a Igreja e ganhou ainda mais força a apologia dos valores cruzadistas. Daí o relevo das comemorações do centenário do Nuno Álvares na Batalha, mas também em Fátima.
Sintomaticamente, o tom das intervenções não deixa de combater o laicismo e de propor novas relações entre a Igreja e a sociedade política.
Por isso nem os católicos encobriam o significado político do culto.
Uma das mais importantes ilações fica numa intervenção do cardeal patriarca, precisamente na Batalha, onde disse que:«Religião e Pátria são termos que sempre andam ligados. Nestes dias em que as bases da civilização cristã são minadas, é refúgio seguro a Igreja que prega obediência à autoridade.»
O traço desta imagem de Nuno Álvares definia os contornos da sua incorporação na hagiografia cívica do Estado Novo, e desenhava um dos seus símbolos – a aliança da Cruz e da Espada – lançando os dados para que, depois de padroeiro da infantaria, o combatente de Aljubarrota, fosse «fascizado» com a sua transformação em padroeiro da Mocidade Portuguesa e da Legião Portuguesa – agrupamentos paramilitares do regime saído da revolta militar do 28 de Maio.
Houve mesmo alguma propaganda inventava analogias e anacronismos, ousava mesmo sugerir a existência de afinidades (providenciais) entre o perfil político e religioso do combatente/carmelista e o de Salazar.»
Face aos desenvolvimentos, pseudo biográficos conhecidos recentemente do ditador, será que a Igreja irá rever a sua posição? Fica a dúvida.