Como devia ser do conhecimento geral, a 25 de Abril de 1974 acontecia em Portugal a última revolução da Europa Ocidental no pós-guerra. Como é apresentada a Revolução dos Cravos nas escolas leva a que tanta gente comenta o que não estuda, não conhece e não lê. Interessava que se desse a conhecer, para além do romantismo, da poesia e dos acontecimentos, que se falasse da dimensão social. Tudo o que se foi a desenvolver ao longo de 1974 e 1975 foram conquistas contra frações da burguesia, com métodos próprios do movimento operário, greves, ocupações de terras e fábricas, e, em muitos casos, mediante organismos autónomos de trabalhadores, de assalariados agrícolas e, em certo momento, de soldados. É essa a dimensão social que importa conhecer para se perceber a dinâmica da revolução e as suas consequências. É relevar como protagonistas os sujeitos sociais, classes e as suas frações, em alternativa a uma abordagem que olha a história pelo prisma dos sujeitos representativos, as elites, procurando dessa forma eliminar do desenvolvimento social a noção de conflito coletivo. Como escreveu Sérgio Godinho, “Vivemos tantos anos a falar pela calada/só se pode querer tudo quanto não se teve nada/só se quer a vida cheia quem teve vida parada/só há liberdade a sério quando houver/a paz o pão/habitação/saúde educação/só há liberdade a sério quando houver/liberdade de mudar e decidir/quando pertencer ao povo o que o povo produzir.” As palavras de Sérgio Godinho dizem exactamente tudo sobre o que o povo procurava. Se a análise que fazemos é social e tem como eixo central a relação entre o poder operário e popular – organizado ou não – e o Estado, a periodização da revolução sofre algumas mudanças face à periodização clássica, que até aqui era proposta, centrada sobretudo nas mudanças de Governos provisórios e nos golpes de estado. E faz toda a diferença esta análise. Importa perceber que o período entre abril de 1974 e setembro de 1975 é marcado, do ponto de vista social, pela conquista das liberdades democráticas, pela melhoria das condições de vida debatidas e resolvidas em assembleias de cidadãos que queriam, sonhavam com uma vida melhor e pela permanência de uma mobilização social onde a greve é a forma de luta determinante, bem como o combate contra os despedimentos. A luta contra os despedimentos leva à generalização da ocupação de empresas e ao reforço das comissões de trabalhadores como órgãos de poder paralelo ao do Estado. A ocupação de fábricas e empresas obriga o Estado a mobilizar capitais para manter a produção. Aprofunda-se a crise económica. E caminha-se para o fim da Revolução. A revolução, essa aventura histórica de Portugal entre 1974 e 1975, foi derrotada no seu momento insurrecional, o ‘assalto final’ ao poder do Estado. Curiosamente, foi muito mais uma revolução que ameaçou o poder económico do que ameaçou o Estado. Isso é importante que se releve! O golpe contrarrevolucionário de 25 de novembro de 1975 foi democrático, não veio pelas botas de uma ditadura militar, embora estivesse alicerçado também num setor dos militares. O golpe restaurou a disciplina nas forças armadas, assegurou a estabilização das instituições, mantendo um Estado de direito, um Parlamento, eleições livres, direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. E, desta forma, surge a democracia representativa que não é nem de longe, nem de perto a extensão da revolução, mas a rutura com a revolução e com a democracia participativa. É o início de um regime assente na continuidade do capitalismo, não haja quaisquer dúvidas. O 25 de novembro de 1975 tinha esse verdadeiro propósito dar palco a certa elite, que beneficiariam das portas giratórias, da corrupção, do nepotismo, do enriquecimento ilícito bem cobertos por uma justiça cúmplice e de uma forma paternalista promover a "caridadezinha" e o assistencialismo para o povo. O golpe do 25 de novembro de 1975 teve como principais implicados o chamado grupo dos nove de que faziam parte nomeadamente Ramalho Eanes, Vasco Lourenço e Melo Antunes, o Partido Socialista e depois o Partido Social Democrata, apoiados nas várias elites para quem a perda de regalias era desastroso. Elites e interesses internos e externos. Curiosamente Vasco Lourenço é hoje em dia presidente da Associação 25 de Abril. Curiosamente. Já quanto a Eanes recordar as suas palavras no discurso de celebração do 2.º aniversário do golpe de 25 de novembro, onde salienta que este acontecimento foi indispensável para estabilizar o Estado e repor o processo de acumulação de capital. E passo a citar: «Mudaram os desafios que se punham às instituições e órgãos de poder. Há um ano, os problemas a resolver de imediato consistiam na reconstrução do Estado, na autoridade do Governo, na convivência das forças políticas e sociais e no reforço da unidade da Nação. Hoje são diferentes as preocupações coletivas dominantes: os avanços indispensáveis deverão ser o restabelecimento duma base de trabalho e duma base económica que permitam aumentar fortemente a produção e criar aceleradamente riqueza. Não basta já arbitrar conflitos. Será necessário introduzir no dia a dia coletivo a vivência das regras de comportamento económico e uma atuação política que permita e promova que se produza mais.». Fim de citação. Afigurasse-nos que para bom entendedor o discurso diz tudo. Assim, hoje, aproveitando a correlação de forças existentes na Assembleia da República, a direita e a extrema-direita e com o apoio do Partido Socialista vão comemorar o golpe de 25 de novembro de 1975. Saliente-se que decorreram 49 anos depois da data, o que diz tudo do ridículo da comemoração. É a vingança de uns quantos sobre um dia marcante na História de Portugal, o 25 de abril de 1974 e a possibilidade da perda de privilégios de uma elite parasitária que vivia e vive dos apoios do Estado. “Todas as revoluções são impossíveis até se tornarem inevitáveis” escreveu um dia a Doutora Raquel Varela. E assim foi a 25 de Abril de 1974. “Esta é a madrugada que eu esperava/O dia inicial inteiro e limpo/Onde emergimos da noite e do silêncio/E livres habitamos a substância do tempo” escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen. Quem hoje lembra essa poesia? A transformação das sociedades através das revoluções sociais é o cerne de toda a História da Humanidade. Quer as elites queiram ou não! Bem sabemos que eles, os poderes instalados, querem-nos medíocres, submissos, acríticos, sem reivindicar os direitos e subjugarmo-nos apenas e tão-só aos deveres. Deveres impostos pela elite dominante e executadas por “robertos” comandados ou telecomandados à distância. Sim, à elite importa que o povo não perceba quem dá a ordem, mas apenas quem a cumpra. A distração é a forma ardilosa de esconder a verdadeira realidade. Tudo, mas tudo, entra nas nossas casas, nos locais de trabalho, à mesa do café ou em qualquer outro sítio de forma encapotada, dissimulada para desvirtuar a verdade histórica. Tudo deturpado, propositadamente deturpado! A mentira é a forma mais opaca para iludir os que procuram a verdade. Mas todos os dias somos invadidos por paleios cretinos, imbecis sobre assuntos que nada nos enriquecem nem o nosso conhecimento e tão-pouco melhoram as nossas vidas. Onde está o desenvolvimento prometido? A dissimulação, a distração e a mentira não são perigosas, porque tranquilizam. A verdade é abusiva e escandalosamente escondida. E assim, neste escabroso espectáculo que as elites querem que as crianças se tornem adultos miseráveis também, o que para as pessoas em geral significa serem responsáveis. As elites adoram os idiotas. Porque não ousam sequer colocá-los em causa. Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da melhoria da vida da grande maioria do povo português. Sim, a utopia um dia passou por Portugal. Mas acredito, como milhões de portugueses, que o sonho comanda a vida. Até um dia, assim o povo o queira!
Tenham uma excelente semana.