Hoje venho falar-vos de
peditórios. Sim, do verdadeiro enxame de peditórios que invadiu a sociedade
portuguesa. O caso que recentemente melhor simbolizou o estado a que chegou
esta modalidade de gestão da caridade pública, é o de um dos peditórios a favor
das vítimas dos incêndios. Envolveu, como agora sabemos, a Caixa Geral de
Depósitos, a Gulbenkian e o Ministério da Saúde.
A CGD foi a primeira
instituição bancária a abrir uma conta de solidariedade para com as vítimas dos
incêndios de Pedrogão. Na comunicação pública inicial que fez, a CGD
identificou como prioritários a reconstrução das primeiras habitações, a reconstrução
de anexos agrícolas, a recuperação dos meios de subsistência das famílias
afectadas e o apoio aos apicultores que viram a sua produção destruída.
Angariou assim donativos que atingiram os 2,6 milhões de euros. O problema é
que a CGD entregou o dinheiro à Gulbenkian, e não aos destinatários a quem tinha
prometido fazê-lo.
O que está em causa não é
aquilo que a Caixa identifica, com bons ou maus argumentos, como prioritário, mas
sim aquilo que os doadores perceberam que ia ser feito com o dinheiro que
decidiram doar. O facto de a Gulbenkian ter decidido pelo reforço da capacidade
de resposta do SNS na emergência e na pós emergência clínica às populações afetadas,
nomeadamente na área dos queimados, só significa que o dinheiro foi usado para
o cumprimento de uma obrigação que é afinal do Estado, com óbvio prejuízo para os
destinatários originais do peditório.
Dito de outro modo, a Gulbenkian
e a CGD acham normal que se peça dinheiro para o apoio directo às necessidades
imediatas das pessoas afetadas e, posteriormente, que esse dinheiro seja
desviado para colmatar falhas do Estado no cumprimento das suas obrigações.
Eu e muito provavelmente
milhões de portugueses, e com toda a certeza os agricultores e apicultores de
Pedrogão, achamos que se há um problema sério com o cumprimento das obrigações
do Estado, o dinheiro deve vir dos milhares de milhão ilegalmente desviado
durante anos para os offshores, ou das imorais ajudas de milhares de milhão à
banca, ou das obscenas negociatas de milhares de milhão das PPPs, ou de mais
uns 50 sítios diferentes aonde a ideia comum é sempre “milhar de milhão”.
Sem discutir sequer a
falta de ética e de vergonha de tudo isto, não consigo entender por que razão a
opinião da Gulbenkian ou da CGD conta mais do que a minha ou a de tantos outros
portugueses. E não consigo perceber como é que um governo permite que tudo isto
se passe, elevando a um nível galacticamente chocante a promiscuidade entre
poder político e poder económico e a subserviência patética dos nossos
políticos.
A consequência mais
imediata desta novela de mau gosto foi uma queda abrupta das doações dos
portugueses no âmbito de outros peditórios. Não conheço os n.ºs nacionais, mas
sei que isso aconteceu, por exemplo, no peditório da Liga Portuguesa contra o
cancro, aqui na Guarda. Assistiu-se igualmente a uma substituição das doações
em dinheiro por doações em espécie, diretamente entregues por cidadãos
individuais e desconfiados aos verdadeiramente necessitados.
Isso demonstra que o mais
grave nem foi a falta de ética e de vergonha a que me referi. Foi o facto de os
envolvidos, com a cumplicidade do nosso governo e das elites dominantes, não
terem conseguido apreender o impacto que isso teria na confiança dos
portugueses nas suas instituições e sobretudo nas organizações não-governamentais
genuínas.
Ficou muito mais difícil
a vida daqueles que pensam a sério em quem mais precisa, porque em situações
destas é mais fácil meter-se tudo no mesmo saco do que separar-se o trigo do
joio. A banca, que já aparecia aos olhos dos portugueses como algo de muito pouco
confiável, conseguiu assim alcandorar-se ao estatuto de verdadeira máfia. O
governo, esse, passou a ser neste filme apenas o juiz corrupto. Tenham um muito
bom dia.
(Crónica na Rádio F - 20 de Novembro 2017)