quinta-feira, outubro 15, 2015

(Re)Lembrando



Naqueles anos negros das ditaduras, salazarista e marcelista a leitura do Diário de Lisboa era quase obrigatória.

Excepção feita à herança Sommer que preenchia páginas e páginas do vespertino, todo o resto era de leitura obrigatória.

Em especial a crónica televisiva do Mário Castrim.

Mário Castrim sabia escrever para que a censura não percebesse o verdadeiro alcance do conteúdo dos textos, sempre com um sentido crítico apurado e uma escrita ímpar.

Professor, jornalista, escritor, dramaturgo, crítico literário, Mário Castrim, nasceu em Ílhavo em 1920 e morreu a 15 de Outubro de 2002.
No dia em que passaram dez anos sobre a morte de Mário Castrim, a escritora Alice Vieira, que foi esposa do crítico partilhou poemas inéditos do jornalista e crítico televisivo do Diário de Lisboa. Transcrevo aqui dois desses poemas:

No retracto velho hoje cinzento
estava toda a família reunida.
– Este aqui és tu.
Este tu era eu – três anos, caracóis, calções
colete, botas.

Este sou eu.
É preciso guardar as provas. Os documentos.
Se um dia me fecharem as cancelas e
não me deixarem passar, aponto logo:
– Este sou eu.

– Passe – dirá o guarda que deve haver
na eternidade – e boa viagem, sim?

– Claro – dirá o menino
que entretanto busca em mim
as sete diferenças
como costuma fazer no desenho
do suplemento do jornal

***

Deste ponto do hotel vê-se qualquer coisa
que logo desde o início se entendeu
não poder ser outra coisa além do Cabo da Roca.
Daqui donde estou se vê que o Cabo é
perfeitamente ocidental o mais
ocidental possível.

Mais do que ele, só os nossos olhos.

Eles, para quem a terra não acaba nunca.
Eles, que tocam o ponto exacto onde
um sol de fogo prova que ela é redonda.

A única diferença é o farol. Mas se fores tu
de noite a olhar o mar, os barcos
podem ir à confiança.

Obrigado, Alice.