quinta-feira, abril 28, 2022

Ponto de vista

Hoje comemora-se aquele 25 de Abril de 1974, o dia em que a utopia fez acreditar que era possível um país novo. Como diz a professora doutora Raquel Varela, em Memória e História da Revolução, e passo a citar: 
«Revoluções não são golpes de Estado nem conspirações, que são dirigidas por partidos mas são feitas pelas massas, diferentes camadas da população. Foram 3 milhões de pessoas em Portugal que através de greves, manifestações, ocupações, lutas sociais, construíram o que de melhor este país teve em 45 anos. Associá-las a um viés ditatorial, caótico, não reconhecendo que foram elas, com o seu trabalho e formas de luta que construíram o Serviço Nacional de Saúde com a nacionalização de Misericórdias por médicos, enfermeiros, outros trabalhadores e o povo na primeira linha, a Segurança Social, a educação universal, é alinhar com a ideia, hoje dominante, de que as maiorias não podem fazer nada de bom». Fim de citação. Mas o povo, que o Movimento das Forças Armadas queria que se mantivesse em casa saiu à rua e participou, manifestou-se, deu o corpo às balas e defendeu o pequeno embrião para que a liberdade e o desenvolvimento se pudesse realizar. E voltando às palavras da professora doutora Raquel Varela sublinhar que: «Nunca houve uma democracia tão plena em Portugal como nos 19 meses de revolução em que colectivamente as decisões eram abertamente debatidas, discutidas e votadas. Nunca tanta gente decidiu tanto na história deste pequeno país. Uma história total, ambicionada por todos, não é só a história dos resistentes. Mas não pode ser feita sem a história dos resistentes. Dos que não aceitaram as ordens sem primeiro as contestar, discutir e votar. E assim elas deixaram de ser ordens e passaram a ser aquilo que foram em grande medida no biénio de 1974-1975: decisões coletivas sobre a forma como uma sociedade quer viver. O direito ao trabalho, que entretanto se perdeu, conquistou-se entre 1974 e 1975. A transição do Estado Novo para uma democracia popular primeiro e depois para uma democracia representativa e um estado capitalista, que é o que se viveu depois do 25 de Novembro». Fim de citação. A tal democracia que chama os cidadãos a irem em manada, de tempo a tempos, deitar um papel numa urna, que nome mais abjecto para um depósito de papéis, confinando ao povo esse papel ilusório e irrisório – votar. Nada mais lhe é permitido pela elite. Que coisa mais ordinária. Reduzir-se a participação dos cidadãos ao servilismo dos votos sem lhes darem a possibilidade de participarem na construção do seu futuro e, pior esconderem, tornarem opaco tudo o que diz directamente respeito às suas vidas. É o poder das elites que se auto proclamam representantes legitimados por um voto. Muitos outros poderes não são eleitos. São impostos aos cidadãos por meio das nomeações. O que determina o maior e mais sério de todos os crimes perpetrados na tal democracia representativa: a corrupção, sem lei na grei. Mas recordo, aqui e agora as palavras sábias de Jorge de Sena publicadas em 1979, em Quarenta Anos de Servidão. Num momento tão difícil como o que se vive recordar as palavras do imortal Jorge de Sena é reflectirmos sobre o que queremos deste nosso Portugal. «Não, não, não subscrevo, não assino que a pouco e pouco tudo volte ao de antes, como se golpes, contra-golpes, intentonas (ou inventonas - armadilhas postas da esquerda prá direita ou desta para aquela) não fossem mais que preparar caminho a parlamentos e governos que irão secretamente pôr ramos de cravos e não de rosas fatimosas mas de cravos na tumba do profeta em Santa Comba, enquanto para salvar-se a inconomia os empresários (ai que lindo termo, com tudo o que de teatro nele soa) irão voltar testas de ferro do capitalismo que se usou de Portugal para mão-de-obra barata dentro ou fora.» Fim de citação. Para mais à frente, sempre de forma crítica, analisar o indesejado fim. «E que fazer agora? Choro e lágrimas? Meter avestruzmente a cabeça na areia? Pactuar na supremíssima conversa de conciliar a casa lusitana, com todos aos beijinhos e aos abraços? Só há uma saída: a confissão (honesta ou calculada) de que erraram todos, e o esforço de mostrar ao povo (que mais assustaram que educaram sempre) quão tudo perde se vos perde a vós. Revolução havia que fazer. Conquistas há que não pode deixar-se que se dissolvam no ar tecnocrata do oportunismo à espreita de eleições. Pode bem ser que a esquerda ainda as ganhe, ou pode ser que as perca. Em qualquer caso, que ao povo seja dito de uma vez como nas suas mãos o seu destino está e não no das sereias bem cantantes (desde a mais alta antiguidade é conhecido que essas senhoras são reaccionárias, com profissão de atrair ao naufrágio o navegante intrépido). Que a esquerda nem grite, que está rouca, nem invente as serenatas para que não tem jeito. Mas firme avance, e reate os laços rotos entre ela mesma e o povo (que não é aqueles milhares de fiéis que se transportam de camioneta de um lugar pró outro). Democracia é isso: uma arte do diálogo mesmo entre surdos. E vamos ao que importa: refazer um Portugal possível em que o povo realmente mande sem que o só manejem, e sem que a escravidão volte à socapa entre a delícia de pagar uma hipoteca da casa nunca nossa e o prazer de ter um frigorífico. Ah, povo, povo, quanto te enganaram sonhando os sonhos que desaprenderas! E quanto te assustaram uns e outros, com esses sonhos e com o medo deles! E tu, canção-mensagem, vai e diz o que disseste a quem quiser ouvir-te. E se os puristas da poesia te acusarem de seres discursiva e não galante em graças de invenção e de linguagem, manda-os àquela parte. Não é tempo para tratar de poéticas agora.». Fim de citação. Jorge de Sena bem que profetizou que às elites só interessa abanar a árvore das patacas. As celebrações sejam elas de comezaina ou de carácter cerimonioso com punhos de renda e leques têm lugares cativos para as elites. E a medalha essa tão capiciosa mas também chistosa forma lusitana de bajulação não faltará. São às centenas. Não se esqueçam dos pides, bufos e tantos outros que viraram a casaca. Brindes e hinos não faltarão nas hipócritas celebrações. Discursos efusivos e arrebatadores de línguas sujas, mais que muitos. O 25 de Abril é de todos, sejamos dignos dos seus ideais mesmo que utópicos mas sejamos capazes de o defender na sua verdadeira pureza.
Tenham uma boa semana e comemorem dentro do possível a data histórica.