sexta-feira, novembro 24, 2017

Ponto de Vista

Hoje venho falar-vos de peditórios. Sim, do verdadeiro enxame de peditórios que invadiu a sociedade portuguesa. O caso que recentemente melhor simbolizou o estado a que chegou esta modalidade de gestão da caridade pública, é o de um dos peditórios a favor das vítimas dos incêndios. Envolveu, como agora sabemos, a Caixa Geral de Depósitos, a Gulbenkian e o Ministério da Saúde.
A CGD foi a primeira instituição bancária a abrir uma conta de solidariedade para com as vítimas dos incêndios de Pedrogão. Na comunicação pública inicial que fez, a CGD identificou como prioritários a reconstrução das primeiras habitações, a reconstrução de anexos agrícolas, a recuperação dos meios de subsistência das famílias afectadas e o apoio aos apicultores que viram a sua produção destruída. Angariou assim donativos que atingiram os 2,6 milhões de euros. O problema é que a CGD entregou o dinheiro à Gulbenkian, e não aos destinatários a quem tinha prometido fazê-lo.
O que está em causa não é aquilo que a Caixa identifica, com bons ou maus argumentos, como prioritário, mas sim aquilo que os doadores perceberam que ia ser feito com o dinheiro que decidiram doar. O facto de a Gulbenkian ter decidido pelo reforço da capacidade de resposta do SNS na emergência e na pós emergência clínica às populações afetadas, nomeadamente na área dos queimados, só significa que o dinheiro foi usado para o cumprimento de uma obrigação que é afinal do Estado, com óbvio prejuízo para os destinatários originais do peditório.
Dito de outro modo, a Gulbenkian e a CGD acham normal que se peça dinheiro para o apoio directo às necessidades imediatas das pessoas afetadas e, posteriormente, que esse dinheiro seja desviado para colmatar falhas do Estado no cumprimento das suas obrigações.
Eu e muito provavelmente milhões de portugueses, e com toda a certeza os agricultores e apicultores de Pedrogão, achamos que se há um problema sério com o cumprimento das obrigações do Estado, o dinheiro deve vir dos milhares de milhão ilegalmente desviado durante anos para os offshores, ou das imorais ajudas de milhares de milhão à banca, ou das obscenas negociatas de milhares de milhão das PPPs, ou de mais uns 50 sítios diferentes aonde a ideia comum é sempre “milhar de milhão”.
Sem discutir sequer a falta de ética e de vergonha de tudo isto, não consigo entender por que razão a opinião da Gulbenkian ou da CGD conta mais do que a minha ou a de tantos outros portugueses. E não consigo perceber como é que um governo permite que tudo isto se passe, elevando a um nível galacticamente chocante a promiscuidade entre poder político e poder económico e a subserviência patética dos nossos políticos.
A consequência mais imediata desta novela de mau gosto foi uma queda abrupta das doações dos portugueses no âmbito de outros peditórios. Não conheço os n.ºs nacionais, mas sei que isso aconteceu, por exemplo, no peditório da Liga Portuguesa contra o cancro, aqui na Guarda. Assistiu-se igualmente a uma substituição das doações em dinheiro por doações em espécie, diretamente entregues por cidadãos individuais e desconfiados aos verdadeiramente necessitados.
Isso demonstra que o mais grave nem foi a falta de ética e de vergonha a que me referi. Foi o facto de os envolvidos, com a cumplicidade do nosso governo e das elites dominantes, não terem conseguido apreender o impacto que isso teria na confiança dos portugueses nas suas instituições e sobretudo nas organizações não-governamentais genuínas.

Ficou muito mais difícil a vida daqueles que pensam a sério em quem mais precisa, porque em situações destas é mais fácil meter-se tudo no mesmo saco do que separar-se o trigo do joio. A banca, que já aparecia aos olhos dos portugueses como algo de muito pouco confiável, conseguiu assim alcandorar-se ao estatuto de verdadeira máfia. O governo, esse, passou a ser neste filme apenas o juiz corrupto. Tenham um muito bom dia.

(Crónica na Rádio F - 20 de Novembro 2017)