quinta-feira, março 09, 2017

Ponto de Vista


O país assistiu recentemente, na esteira da publicação por Cavaco Silva de um livro de memórias e da posterior reação pública de José Sócrates, a mais uma daquelas novelas que nos permitem compreender muito do porquê da situação a que Portugal chegou.

Cavaco disse de Sócrates aquilo que se sabe, de que recordo em particular as referências aos negócios com a Venezuela e com a PT. Com acusações de deslealdade e outras pelo meio, colou a José Sócrates uma imagem muito pouco recomendável para posterior registo histórico.

José Sócrates respondeu na mesma moeda, falando, entre outras coisas, em “bisbilhotice política”, “falta de sentido de estado”, “ataques políticos traiçoeiros” e “deturpação de conversas”. Assim mesmo.

Para o comum dos mortais ficou sobretudo uma lamentável imagem de dois políticos que geriram o nosso destino em momentos cruciais da nossa história. De facto, é impossível saber-se quem tem razão, ou sequer se algum deles tem razão. E mesmo que acabássemos por concluir que algum tinha mais razão do que o outro, ou até que a tinha toda, isso pouco importa. Fica-nos na mesma um amargo de boca, uma espécie de sensação de vazio.

Com toda esta polémica, a classe política desceu ainda mais baixo, quando muitos já não acreditavam que tal fosse possível. Os portugueses estão hoje atolados em dúvidas sobre a própria honorabilidade de José Sócrates e de Cavaco Silva, decorrentes dos múltiplos escândalos cujas faturas nos vêm sendo sucessivamente apresentadas, de que recordo as PPPs, o BPN, a PT, o BES, e a CGD, entre tantos outros.

Numa democracia madura, a prestação de contas a que se referiu Cavaco Silva teria de respeitar duas premissas fundamentais: ser efetuada com transparência e, sobretudo, acontecer na altura certa. Ora, não só persistem as dúvidas sobre o desempenho de Cavaco em muitos dos dossiers a que me referi acima, dúvidas essas que o livro não esclarece, como a revelação de conversas sem testemunhas, sobretudo nos termos recorridos pelo ex-presidente da República, remetem claramente para um contexto de óbvia conflituosidade política e pessoal como motivação para a mesma.

É da praxe, até nos casamentos, que falemos na altura certa ou nos calemos para sempre. Ao não ter falado quando devia, Cavaco demonstra não ter apreendido a importância dos timings políticos. Quando presidente da República, ainda se julgava no tempo em que foi primeiro-ministro. E, pelos vistos, hoje ainda se julga um pouco presidente da República...

José Sócrates, por seu lado, também não percebeu que os portugueses já não embarcam em futebóis, de que é expoente máximo aquela galática piada destinada a fazer-nos crer na generosidade milionária de um amigo desprendidamente generoso…

São estes os personagens que arrastaram atrás de si multidões de crentes, como se de uma simples profissão de fé se tratasse. O facto de ainda conservarem muitos desses crentes explica muito do bloqueio a que a nossa democracia está sujeita. Todos os sistemas políticos são modulados pelo nível de exigência dos cidadãos. Se esse nível é baixo, se as pessoas adotam uma posição simplesmente clubística em relação aos juízos que fazem sobre quem nos lidera, como tem tipicamente sucedido no caso português, a qualidade do aparelho político é igualmente baixa e a possibilidade de chegarem ao topo políticos com qualidades que mereçam um consensual lugar na História é muito reduzida.

Quando olho para trás, vejo sobretudo um passado de oportunidades perdidas, de escolhas mal feitas, de colossais erros cometidos, enfim, tudo assente em manipulação, desinformação, clubismo e hipocrisia q.b.

Já Camões dizia que fracos reis tornam fraca a forte gente, máxima que não me conforta quando dou por mim a pensar se essa própria “forte gente” será assim tão forte. De facto, esta novela Cavaco contra Sócrates, ou vice-versa, é uma espécie de sublimação daquilo que têm sido as nossas escolhas enquanto povo. No mínimo, não augura nada de bom.
Muito bom dia a todos.
 
(Crónica Rádio F - 6 de Março 2017)