quinta-feira, dezembro 01, 2016

Ponto de Vista

A recente vitória de Donald Trump nas eleições norte-americanas não tem apenas impacto na vida dos seus concidadãos. Pela natureza do cargo, por estar em causa a maior potência militar do mundo, e por outras inúmeras razões que aqui não vou elencar, esta vitória não deixará de ter implicações na vida dos restantes habitantes do planeta. Quer isto dizer que não há forma de ignoramos o assunto, como aliás se demonstra à saciedade através de um simples passeio pelos debates acalorados que incendeiam as redes sociais.
O filósofo Immanuel Kant, autor da célebre obra «Crítica da razão pura», foi o criador de um primeiro sistema interpretativo do período moderno. Tomou para o efeito em consideração o impacto nas nossas vidas da Revolução Científica e do Iluminismo. Depois dele muita coisa mudou e do iluminismo revolucionário e progressista de Kant passou-se àquilo que é hoje denominado de populismo.
O populismo é um conceito difuso e algo viscoso que, pelas suas características e adaptabilidade, pode estender-se a qualquer campo de análise, nomeadamente à vida política. Tradicionalmente designa uma ideologia caracterizada por uma hostilidade às elites e por uma alegada devoção ao povo. Segundo essa ideologia o que define as elites é - para além dos seus privilégios - o seu egoísmo, carácter corrupto e desprezo pela pessoa comum. Para o populismo, às pessoas associa-se uma natureza virtuosa inquestionável, em contraponto ao seu estatuto de vítimas dessas elites.
O populismo tradicional, para mais fácil adaptação às suas próprias necessidades, foi sempre caracterizado pela rejeição da divisão entre esquerda e direita e pela desconfiança do pluralismo político. Assenta na fé num líder capaz de incorporar-se às pessoas e de expressar os seus desejos. Todas estas características que descrevi são típicas do fascismo, independentemente de não serem as únicas nem exclusivas dele.
Por essa razão estes populismos sempre foram encarados com desconfiança por parte da esquerda democrática. Nos últimos anos, no entanto, incrivelmente, talvez por pragmatismo ou até desespero, alguns pensadores de esquerda também o têm reivindicado. Basta olharmos para o caso da Venezuela.
O populismo é uma ideologia oca, sem conteúdo, mas é exatamente aí que reside a sua principal virtude, uma vez que ele é capaz de acomodar toda a frustração e raiva dos oprimidos contra as insuficiências das instituições democráticas, incapazes de responder às questões sociais que dilaceram a vida das pessoas comuns.
É aí que reside o erro, inconsistência, ou hipocrisia da coisa. A pergunta a fazer é: “como é que sabemos que o populismo é bom”? De facto, não há bom ou mau populismo! Há apenas populismo!
O problema de tudo isto é que a democracia, pensada há mais de 2 mil anos e posteriormente catapultada para a História moderna pelo Iluminismo de Kant e de muitos outros, é intrinsecamente incompatível com o populismo, pese embora estar ritualmente cada vez mais associada a ele.
O escritor judeu Elie Wisel, sobrevivente dos campos de concentração de Auschwitz e Buchenwald e vencedor do prémio Nobel da paz de 1986, afirmou um dia, numa altura em que os populismos já haviam criado vítimas suficientes para ser impossível desprezar a sua existência histórica, que esquecer os mortos seria o mesmo que matá-los uma segunda vez.
Não quero com isto dizer que Donald Trump é um assassino ou que virá a sê-lo. Mas é inegável que se comporta como um fascista anti-islâmico, usou o racismo para chegar ao poder, propôs deportações em massa, defendeu documentos de identificação específicos para muçulmanos, prometeu tornar a América novamente grande e culpa mexicanos, muçulmanos e outras minorias pelos problemas que afligem o país.

Onde se lê “muçulmano” ”leia-se “judeu” e teremos comprado um bilhete lá para os idos de 1933. Tal como então, já não é só a democracia que está em causa. Arriscamo-nos a ser todos nós… 
Muito bom dia para todos.

(Crónica na Rádio F - 14 de Novembro de 2016)