segunda-feira, outubro 17, 2016

Gostei de ler


A austeridade das esquerdas

João Gonçalves *

O primeiro-ministro, quando está mais "apertado", começa invariavelmente as respostas por um mal pronunciado "vamos lá a ver". E "pegou" o vício ao Orçamento para 2017. É natural. Um orçamento - do Estado, das compras para a casa ou de uma obra de construção civil - é uma previsão de despesas e de receitas. No caso do Estado é, também ou sobretudo, um documento político. Um governo, o de Mota Pinto em 1979, viu a sua proposta orçamental rejeitada pelo Parlamento e caiu a seguir. Na derradeira legislatura, para não irmos mais longe, foram vários os pedidos de aferição da constitucionalidade de algumas normas orçamentais. E outros tantos foram os rectificativos por causa das decisões do Tribunal Constitucional ou apesar delas. Nenhum presidente vetou qualquer orçamento mas também nenhum, até agora, se privou de suscitar questões de constitucionalidade, ou outras, junto de quem de direito. O próprio dr. Centeno encarregou-se de cobrir o seu documento de política ao declará-lo "de Esquerda", uma inovação "doutrinal" em matéria de Finanças Públicas e Direito Financeiro. O Relatório do Orçamento, aliás, menciona a "estabilidade política" decorrente de uma maioria parlamentar explícita, que o orienta e justifica, o que decerto agradará a Bruxelas. O "visto" europeu não depende de "ideologias". É-lhe indiferente se os orçamentos são de "Esquerda" ou de "Direita" desde que a execução orçamental cumpra os limites do défice. É por isso que, entre manobras de ilusionismo orçamental, este Orçamento prolonga a austeridade (Jerónimo chama eufemisticamente "limitações" à austeridade e Catarina descreve-a hipocritamente com "um Orçamento do PS"), não dá garantias à economia e instabiliza fortemente o sistema fiscal com um "modelo" agravado de tributação indirecta que mais parece copiado daquilo que Costa fazia na Câmara de Lisboa: taxas e taxinhas a nível nacional. É um Orçamento instável, clientelista (por exemplo, dos 445 milhões de euros para Cultura, 0,1 % do PIB, 236 são para a RTP, o que só por si equivale a 84% da rubrica do total das "reposições" horárias e de "cortes" na Função Pública), tacticista e cheio de vasos comunicantes em forte risco de entupimento na execução. É, afinal, o "vamos lá a ver" em números. A Direita, porém, deve levar a sério mais a afirmação da "estabilidade política" que os números. Embora não saibamos o que tem para troca. Porque esta "estabilidade", com mais ou menos austeridade, veio para ficar. Custe o que custar.

* JURISTA

O autor escreve segundo a antiga ortografia