sexta-feira, dezembro 04, 2015

(Re)Ler


Viver é fazer meia com uma intenção dos outros.
Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso.
Croché das coisas... Intervalo... Nada...
Pobres-diabos sempre com fome — ou com fome de almoço, ou com fome de celebridade, ou com fome das sobremesas da vida.
Quem os ouve, e os não conhece, julga estar escutando os mestres de Napoleão e os instrutores de Shakespeare.
Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes.
A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira.
Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente a de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna — a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor.
Por isto, contudo, amo-os a todos.
Meus queridos vegetais!
"O gajo estava tão grosso que nem via a escada".
Ergo a cabeça. Este rapazote, ao menos descreve. E esta gente quando descreve é melhor do que quando sente, porque por descrever esquece-se de si.
Passa-me a náusea.
Vejo o gajo.
Vejo-o fotograficamente.
Até o calão inocente me anima.
Bendito ar que me dá na fronte — o gajo tão grosso que nem via que era de degraus a escada — talvez a escada onde a humanidade sobe aos tombos, apalpando-se e atropelando-se na falsidade regrada do declive aquém do saguão.
A intriga, a maledicência, a prosápia falada do que se não ousou fazer, o contentamento de cada pobre bicho vestido com a consciência inconsciente [?] da própria alma, a sexualidade sem lavagem, as piadas como cócegas de macaco, a horrorosa ignorância da inimportância do que são...
Tudo isto me produz a impressão de um animal monstruoso e reles, feito no involuntário dos sonhos, das côdeas húmidas dos desejos, dos restos trincados das sensações.
Agir, eis a inteligência verdadeira.
Serei o que quiser.
Mas tenho que querer o que for.
O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito.
Condições de palácio tem, qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se o não ficarem ali?
 
- Livro do desassossego, Fernando Pessoa