terça-feira, fevereiro 03, 2015

Ponto de vista

Os portugueses devem ser atualmente um dos povos mais infelizes da Europa. Após anos de austeridade, até os mais crédulos e indefetíveis adeptos da atual governação começam a duvidar, pelo menos em privado, do sentido dos sacrifícios até agora efetuados. De facto, a sistemática quebra de rendimento, o desmantelamento de serviços públicos, o corte nos direitos sociais, a precariedade no emprego, tudo isso e muito mais, não produziu os efeitos desejados. O desemprego mantém-se a níveis intoleráveis, a emigração forçada acrescenta velhice à insustentabilidade a prazo da Segurança Social, a dívida pública não cessa de aumentar, a esperança coletiva é menor do que nunca.
Os discursos de circunstância colhem cada vez menos aceitação. A conversa acerca da confiança no país, acerca da mobilização das pessoas, da governação de proximidade, do diálogo político, da transparência e gestão com rigor, não passa disso mesmo, de simples conversa de ocasião.
O INE publicou recentemente dados que não auguram nada de bom. Basicamente, assiste-se a um crescimento do risco de pobreza, que em 2013 abrangia já 2 milhões de portugueses. Os menores de 18 anos são o grupo etário em maior risco de engrossar essa fileira. Isto é, aqueles que representam normalmente o futuro, arriscam-se a ser cada vez mais pobres.
Mas os dados do INE revelam ainda aumentos do risco de pobreza das pessoas empregadas, isto é, revelam que em Portugal se consegue empobrecer até quando se trabalha. E sem nunca esquecer os reformados, ciclicamente apontados como um grupo em crescendo no risco de pobreza.
Por isso não espanta que os portugueses pensem cada vez mais com a barriga e cada vez menos com a cabeça.
É que, em séculos de vida, encontramo-nos, enquanto povo, perante desafios que só podem equiparar-se ao de uma batalha de Aljubarrota, à crise da Restauração pós 1640, ou ao drama das invasões francesas. De acordo com as piores projeções demográficas, arriscamo-nos a ser apenas 5 milhões dentro de 100 anos. A realidade atual impõe uma cada vez menor importância relativa de Portugal, na Europa e num mundo cada vez mais globalizado e anglófono. Arriscamo-nos, como pouquíssimas vezes em nove séculos de existência, a um dia não passarmos de uma simples nota de rodapé nos livros de história. E para isto não há discurso que nos valha.
A classe política responde perante um povo que cada vez mais, por necessidade, reage em vez de agir. Todos os discursos e intervenções, todas as abordagens aos problemas, são sempre efetuadas numa perspetiva de curto prazo e de premência eminente. Não existe espaço para a discussão programática e ponderada de uma linha de rumo que defina consensualmente um futuro possível e esperançoso. Há um afogo permanente e doentio.
Num país em que as desigualdades são cada vez maiores, em que o medo e a injustiça predominam, em que a esperança morreu, impera a lei do salve-se quem puder, aqui e agora. Nem sequer acreditamos numa rutura como a que os gregos tentaram, ou como aquela que os espanhóis ameaçam fazer. Portugal é na verdade um país único, um país de derrotados e conformados, onde, os poucos que lutam, ou são radicais ou são doidos.
Ter consciência de tudo isto e assistir a tudo aquilo que se tem passado, imprime inevitavelmente um ar de esquizofrenia ao quadro da nossa vida. Gostaria que toda esta descrença não passasse de um simples sonho. Mas infelizmente aquilo que vivemos é um pesadelo. Pelo menos aqueles que nos vamos dando conta disso. Sim, porque o mais bizarro é que há ainda por aí muita gente que continua a viver no mundo das nuvens. Acreditam no que lhes dizem, porque acreditar é uma forma de fugirem à realidade. É uma forma de continuarem a viver. A esperança é a felicidade dos pobrezinhos.

Florbela Espanca gostava de dizer que não costumava acreditar muitos nos sonhos… porque de todos se acorda. De facto, os sonhos representam a realização de um desejo. E isso os nossos políticos perceberam muito bem. Para muito má sorte nossa. Como se tem visto. 
Muito bom dia a todos.

(Crónica na Rádio F - dia 2 de Fevereiro de 2015)