terça-feira, janeiro 06, 2015

Ponto de vista

Se eu tivesse de eleger uma figura para o ano de 2014, ela seria sem dúvida o papa Francisco. E olhem que eu sou insuspeito como ninguém…
Bem sabemos que a Igreja católica escolhe os seus papas, bispos e demais figuras em função dos tempos e, principalmente, das convulsões sociais. Sabemo-lo bem. Mas este papa tem ido bem mais além. Corporiza qualquer coisa de diferente. Transporta consigo uma formação latino americana. Uma cultura do saber erigida em vivências no terreno da miséria, da fome, da exploração e da suprema indignidade da condição humana.
O papa Francisco despertou consciências para problemas velhos mas que nunca foram genuinamente denunciados. Temos por isso assistido a uma confrontação de poderes, dentro da própria igreja católica, dirigida sobretudo aos acomodados e ao bem-estar de certas hierarquias instaladas.
O papa denunciou a escravatura nas suas diferentes formas. Vou apenas citar parcialmente algumas das coisas que disse a propósito: “Perguntemo-nos, enquanto comunidade e indivíduo, como nos sentimos (…) quando (…) nos encontramos ou lidamos com pessoas que poderiam ser vítimas do tráfico de seres humanos ou, quando temos de comprar (…) produtos que poderiam razoavelmente resultar da exploração de outras pessoas”.
Francisco explica que para além de existir ainda escravatura no sentido literal do termo, há outras formas de exploração do homem que se encaixam na mesma categoria. E cito novamente: “(…) trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, desde o trabalho doméstico ao trabalho agrícola, da indústria manufatureira à mineração.” Francisco afirma que esta exploração do homem pelo homem só é possível porque, e cito novamente, “no centro de um sistema económico está o Deus dinheiro e não o homem, a pessoa humana”. Assim mesmo!
Para Francisco existe uma causa profunda na raiz de todos estes males: “uma conceção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um objeto”. Por isso o papa apelou aos políticos para que garantam a todos os cidadãos, e atentem bem nas suas palavras, “trabalho digno, educação e cuidados de saúde”. Esta economia mata e o capitalismo sem limites é “uma nova tirania”, afirmou o Papa!
Claro que continuo em desacordo com muito daquilo que é defendido pela igreja católica, nomeadamente no que concerne ao papel da mulher na vida eclesiástica e à questão do aborto. Mas o mesmo diria de outras confissões. O mais significativo é que a igreja tenha assumido um discurso oficial que trás à memória um certo cheiro a “teologia da libertação”…
Num ano que foi de imenso sacrifício para a maioria dos portugueses, a mensagem deste papa é uma bofetada de luva branca nas políticas prosseguidas pelos nossos governantes. Tenho a profunda convicção de que gente como Passos Coelho e Cavaco Silva se sentiria muito pouco à vontade numa missa conduzida por este papa. É que só enfia o barrete quem tiver a cabeça à medida, e está visto que os nossos governantes parecem ter sido engordados para caber à justa dentro do gorro!
À margem de tudo o que se possa dizer e pensar sobre o assunto, uma coisa é certa: muito daquilo que tem sido dito por este papa, colocado na boca de uma pessoa comum, candidatava-a imediatamente ao rótulo de esquerdista radical. O que não deixa de ser espantoso!

Não é preciso ter-se fé ou ser-se crente, seja da religião ou da política, para percebermos que caminhamos em direção ao abismo. Depois deste papa, outro virá. E novos Passos Coelhos, Cavacos, e personagens do género. Num mundo em que os ladrões estão cada vez mais dentro do cofre, em que as desigualdades são excruciantes, e em que a demagogia, a manipulação e a mentira são a imagem de marca da política moderna, as palavras deste papa são como o bálsamo que colocamos numa ferida. Não curam mas pelo menos aliviam. O que já não é pouco para quem tanto padece. E sempre ficamos a saber que afinal não estamos todos doidos. 
Aleluia e que continue o circo!

(Crónica na Rádio F - 5 de Janeiro de 2015)