quinta-feira, janeiro 15, 2015

Gostei de ler


“Os portugueses são um povo completamente mal-educado”

Inveja. Brandura. Chico-espertismo. País de doutores e engenheiros e de pessoas mal-educadas. O retrato do povo português é feito pela jornalista e escritora Marisa Moura na sua obra mais recente, “O que é que os portugueses têm na cabeça” (Esfera dos Livros).
Ao longo de quase 400 páginas, a autora analisa estatísticas, comportamentos, textos de pensadores e fala com especialistas para perceber como se vive em Portugal. O prognóstico não é o mais optimista, mas a intenção é boa.
Marisa Moura levou três anos num projecto que ambiciona perceber por que razão somos “mal-educados em todos os sentidos do que é a educação”, tanto académica como moral, porque parecemos “doidinhos”, não sabemos reclamar, e — tendencialmente falando — somos brandos.
“Procurei respostas para perceber o que realmente temos nestas nossas cabeças. Por que entrou em decadência o grandioso Portugal das Descobertas? Por que somos hoje dos povos mais infelizes e pobres da Europa? “. A culpa, diz Marisa Moura, é dos romanos e da Igreja Católica, que tanto nos infantiliza como nos desresponsabiliza. “O simples facto de os crentes acharem que há um “pai” que cria tudo e que já está tudo decidido… Se há alguém que decida por nós, por que é que havemos de fazer seja o que for?”.
Desde que me lembro de existir, diz Marisa Moura, que acho inacreditável as coisas que vejo no dia a dia, os narcisismos. Antes de saber que a palavra “narcisista” existia já a sentia na pele. Exemplos flagrantes são os atendimentos nos serviços públicos. As pessoas têm mesmo de pensar no que andam cá a fazer — esse é o grande objectivo do livro, que as pessoas percebam que são uma pequena gota no oceano.
Considero a expressão “o exemplo tem de vir de cima” uma expressão assassina. Se és um ser humano, o que está acima? Porque é que nos havemos colocar automaticamente abaixo dos outros? Há uma cultura de desigualdade social tão enraizada que não nos apercebemos o quanto somos influenciados por ela no nosso dia a dia. A cultura do “sr. engenheiro” é, também, uma expressão dessa desigualdade e o que a perpetua é, sobretudo, o conforto que lhe está inerente: se tu não és superior, então não tens responsabilidades.
O livro tanto corre o risco de ser ofensivo como de despertar as pessoas para algumas ideias. Quem sabe mais ou menos o que anda cá a fazer pode não encontrar no livro grandes insights; quem realmente deveria retirar alguma coisa daqui são, por norma, pessoas que não são muito receptivas a olharem-se ao espelho e que até respondem com alguma agressividade, em vez de pensarem “se calhar também sou assim”. Eu falo de nós, também sou portuguesa, acrescenta Marisa Moura.
O povo português tem tantas características díspares que não podem ser descritas numa frase. A única coisa que posso dizer e que vejo — é um facto — é que é um povo completamente mal-educado em todos os sentidos do que é a educação, tanto académica como moral. Nem todos os países foram resgatados três vezes em quarenta anitos. Na geração dos meus pais (pessoas com 65 anos) éramos os últimos — atrás da Turquia e do México — na lista dos países desenvolvidos da OCDE, em termos de pessoas com o ensino secundário completo. Não é normal. Não o podemos aceitar. Devíamos estar completamente em pânico, chocados.
“É verdade que Salazar pôs em prática uma série de técnicas para nos amansar, mas essas técnicas têm sementes seculares, já dos tempos dos romanos, antes de Cristo. Foram séculos e séculos de operações em várias frentes, todas a culminar na matança do espírito crítico. (…) Consta que, do cruzamento dos celtas com os nativos, nasceram os nobres e fortes lusitanos. Entretanto chegam os romanos (…) com estradas, técnicas agrícolas, língua e numeração própria, leis e uma amoralidade revelada logo à chegada.”
Qual a raiz do problema? De quem é a culpa?
«É dos romanos. Nunca há certezas de nada, mas eu acho que foi na altura dos romanos que nos começámos a estragar. A maior parte das nossas palavras são romanas, a nossa numeração é romana. Ainda usamos expressões como “agradar a gregos e a troianos”, que vêm desses tempos. As leis foram os romanos que as trouxeram, bem como a [mania] das grandezas. O que fizemos nas descobertas? Uma versão upgrade dos romanos quando colonizaram isto tudo. Foi a mesma atitude.

A igreja Católica [também] deu cabo de nós — não estou a dizer nada que já não se diga há 200 anos. A igreja infantiliza-nos, desresponsabiliza-nos. Só a questão da confissão… há ali um interlocutor com Deus, que está acima de ti. Porque não meditar diretamente com Deus se acredito nele? O simples facto de os crentes acharem que há um “pai” que cria tudo e que já está tudo decidido… Se há alguém que decida por nós, porque é que havemos de fazer seja o que for? Aliás, a Igreja penaliza esse sentimento da acção; tu não és ninguém para desdizer Deus. E nós não tememos Deus, nós tememos perder [o amor de] Deus.
Abre o livro a dizer que parecemos uns “doidinhos”. Porquê?
Quando pedes um café cheio e trazem-te um curto ou quando pedes um prego bem passado e trazem-no em sangue… só nesse tipo de coisas já parecemos “doidinhos”. Falemos do caso dos PEC (Programa de Estabilidade e Crescimento). O então ministro das Finanças apresentou o PEC I, depois o II. Mas quando o Teixeira dos Santos apresentou o III [o IV caiu], fiquei perplexa com a reacção dos jornalistas… as palavras que se usaram, é como se [o Governo] não tivesse feito o primeiro. Parecemos uns peixinhos de aquário. Lemos notícias nos jornais sem contextualização. Vivemos de insights avulsos sem qualquer ligação. A sério, parecemos “doidinhos”. Um bom espelho dessa expressão é a imprensa portuguesa. Como agora está na moda sermos curiosos, agora a manada explica.

Isto também está relacionado com o sono, algo que em 2004 foi declarado um problema de saúde pública pela Deco. Deitamo-nos tarde e maltratamos o sono. Está comprovadíssimo que dormir mal diminui a noção do bem e do mal, isto é, a ética. Uma pessoa mal dormida é uma pessoa com menos ética (À ATENÇÃO DO PADRE MARCELO). Ficamos mais intolerantes. Mas quando eu falo disso, as pessoas acham mais ou menos normal.
“‘Ó cão! O que é que estás a ladrar, meu ‘ganda’ cão? Enfio-te dois borrachos nesse focinho…(…)". Explosões como estas acontecem todos os dias por essas estradas fora, mas são das poucas situações em que um tuga ousa afirmar-se. No refúgio do popó sabe bem praguejar e fugir. Não somos pessoas de preparar grandes cocktails molotov como os gregos, mas ao volante gostamos de misturar uma certa dose de testosterona e intolerância e atropelar o mais elementar bom senso cívico”.
“Reclamar não é connosco”, lê-se. Porquê?
Não sabemos reclamar como deve de ser, não temos método para tal. Não nos preocupamos em ser eficientes no geral, tanto que há aquela coisa “para inglês ver”. Isso aplica-se a tudo, inclusivamente na reclamação. Uma pessoa para reclamar tem de mostrar factos, o que está mal e qual a solução possível. Não é começar a dizer mal nas costas.

É uma questão de confronto? Isto é, não gostamos de confrontar as pessoas?
Exactamente. A pescadinha de rabo na boca é tal que obviamente está tudo ligado. Lá vem a Igreja Católica outra vez. Vais afrontar Deus? Vais afrontar o “dono disto tudo”, o DDT? Nós temos de reclamar, não é isto de ir para a rua dizer que está tudo mal. Isso não é reclamar coisíssima nenhuma, temos de reclamar coisas concretas. Nós fomos todos para a rua no 15 de setembro e a TSU caiu porque era uma coisa concreta [grande manifestação de Setembro de 2012, que acabou por fazer cair o anunciado aumento da taxa social única (TSU)]. As pessoas percebiam que havia uma lei em especial que as estava a indignar e queriam que aquilo não acontecesse. E não aconteceu. Raramente se percebe a real causa das greves.

Se não reclamamos, também não opinamos?
Lá vamos nós à Igreja Católica… Temos medo do que as pessoas pensam de nós. Para o que nos dá jeito somos inferiores, para o contrário é um ‘quem és tu para me dizer alguma coisa?’.
Ilustra muito bem os portugueses.
Desde que não nos obriguem a olhar muito para nós próprios…
“Em Portugal, os trabalhadores são brandos, os consumidores são brandos, a esquerda radical é branda, os jornalistas são brandos. É tudo brando. O país das branduras.”
Somos brandos?
Não sei.

Citando-a, este “é o país das branduras”.
É assim que é conhecido. Tão depressa somos catalogados como os mais “resignados” do momento [reportagem do The New York Times, a propósito da crise financeira nos países afectados pela austeridade — Irlanda, Grécia, Espanha e Portugal –, na qual lê-se “Talvez em mais lugar nenhum, as pessoas estejam tão resignadas como em Portugal”], como os espanhóis Los Indignados afirmam ter nascido do protesto realizado a 12 de Março pela [portuguesa] Geração à Rasca. A própria pessoa que funda o movimento deu uma entrevista a dizer que olharam para Portugal e que ficaram com vergonha por não estarem a fazer a mesma coisa.

É por isso que não consigo dizer se sim ou se não. Tendencialmente, somos vistos (e vemo-nos) como sendo pacíficos e brandos. Mas o conceito de brando é muita coisa — estamos a falar das reclamações em entidades públicas, da intolerância face aos imigrantes…
É difícil dar uma resposta.
A brandura é, pelo menos neste livro, um chapéu para várias coisas.
Eu tento ver se somos brandos no sentido de “pacíficos” e “acolhedores” ou se somos brandos por aquilo a que se chama de “banana”.
Escreve também que tendemos a negar a realidade…
Ninguém gosta de não gostar de si próprio. Segundo psicólogos, o que nós fazemos na vida é construir uma história que nos agrada. Como os portugueses são seres humanos, passamos a vida a criar histórias que nos agradam. E como a realidade não tem grandes razões para nos agradar — as bancarrotas, as desigualdades… — dá-nos jeito negar que tenhamos, cada um de nós, responsabilidades sobre o estado do país. Dá-nos jeito negar as nossas responsabilidades.

Parece que o português quer muito ser aceite socialmente. Porquê?
Porque somos muito mal-educados, nos dois sentidos.

A inveja resulta disto também.
Preferimos não arriscar quando estamos com medo, então nunca chegamos a testar-nos muito bem, a conhecer aquilo que somos capazes de fazer.
Se tu tiveres uma auto-estima muito baixa — e a esmagadora maioria tem –, qualquer grão de areia nessa tua insegurança derruba-te e tu tentas sobreviver.
Acha que o livro espelha o que é ser-se português?
Sim, acho.


IMPERDÍVEL - “O que é que os portugueses têm na cabeça”, de Marisa Moura, editada pela "Esfera dos Livros".

P.S.: Alguém faz o favor de oferecer o livro ao Eduardo Lourenço. Cá por coisas…