terça-feira, dezembro 30, 2014

Ponto de vista

O ano que agora termina é a prova acabada de que Marx tinha toda a razão quando afirmava que a história se repete. A primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Senão vejamos:
Este ano, como nos filmes, tivemos a beatificação de um papa, a abdicação de um rei e a morte de uma rainha. Até aqui, nada de anormal.
Mas pelo meio, no contexto de uma guerra que só chamou a atenção do ocidente quando teve mesmo de ser, fomos confrontados com o ressurgimento de novas formas de fanatismo islâmico, com degola de inocentes à mistura; só então nos interessámos pelas perseguições às minorias cristãs e promovemos novas cruzadas contra os mouros.
Em nome da globalização, incrementámos o tráfico de escravos e permitimos que a grande ceifeira da economia mundial continue a matar de fome e de miséria. O ocidente só reagiu ao Ébola quando o mesmo ameaçou entrar-lhe fronteiras adentro e destruir os fundamentos financeiros que são hoje a sacrossanta religião do mundo civilizado. Quanto às péssimas condições económicas e higiénicas de povos tantas vezes tratados como inferiores e distantes, as quais estiveram na origem da dita cuja epidemia, continua tudo na mesma. Até à próxima crise…
Os novos senhores feudais do mundo proliferam no contexto de uma finança cada vez mais desumanizada. A moeda cunhada, enviada para as feitorias dos tempos modernos, as chamadas offshores, fica a salvo de quaisquer tributações e penhoras e serve para acrescentar poder ao poder. Em nome do pecúlio de uns poucos, trabalha-se assim cada vez mais por cada vez menos dinheiro. Pode dizer-se que o trabalho escravo voltou. Atiram-se trabalhadores para o desemprego com o argumento do interesse público, que se sabe ser afinal privado e de uns poucos. À pala de tudo isto, os servos pagam a corveia e banalidades que atingem valores insuportáveis.
Os direitos deixaram de ser adquiridos e passaram a ser aqueles que os senhores do mundo quiserem que sejam. A proteção social deixou de ser solidária e foi substituída pelo assistencialismo e pela caridadezinha das ordens religiosas, pagas com os dízimos de todos nós. É o regresso, em força, dos asilos, da sopa dos pobres, e de coisas parecidas.
A saúde reduz-se à gestão de jardins de pedra e à contabilização dos gastos com os doentes. A educação resume-se cada vez mais, face aos campeonatos entre instituições, a um saber escolástico, formatado e entregue às ordens, sejam elas maçónicas ou religiosas. Mas sempre mercantilistas. Ao povo, esse, basta saber ler, escrever e contar. Um pouco!
As cortes reúnem para proclamar e conceder hossanas à realeza. O Santo Ofício voltou e determina que se atirem à fogueira os que ousam dizer NÃO. Procurar emprego é terrorismo. O nepotismo instalou-se. Emigrar é uma fatalidade, decretam constantemente os cronistas do reino.
A verdadeira informação morreu. A investigação jornalística, quase sempre controlada e comandada por interesses superiores, desculpa consciências e libera mentiras. O show do jornalismo de esgoto invadiu tudo. Os poucos que ousam resistir a este lamentável estado de coisas, são mortos, perseguidos ou ameaçados, consoante o país em que vivam.

Finalmente, para coroar esta triste decadência coletiva, a república, que já era das bananas, virou agora monarquia de pacotilha. O presidente é cada vez mais um rei que não sabe o lugar que ocupa. Ou uma rainha como a de Inglaterrra, o que é coisa ainda pior. Limita-se a respeitar os interesses dos senhores feudais e do clero. Num assomo de cobardia quase inigualável, remete-se ao silêncio sempre que não era preciso. Em contrapartida faz saber, pelos arautos reais, que a paz e o progresso no reino tudo justificam. O povo, esse, é cada vez mais súbdito e menos cidadão. A soberania nacional vende-se a preço de saldo, um pouco por todo o lado. Em suma, o bem-estar dos cidadãos depende cada vez mais dos outros e cada vez menos de si. Por isso, a subserviência é a regra. Bem-vindos à barbárie da nova Idade Média. Até pró ano, que há mais!
(Crónica na Rádio F - dia 29 de Dezembro de 2014)