sábado, dezembro 06, 2014

Ponto de vista

Ao contrário do adágio popular segundo o qual “todos os dias é Natal”, o executivo camarário da Guarda não olha para o Natal como um dia qualquer. Senão vejamos:
Em Portugal já existia uma coisa chamada “aldeia Natal”. Trata-se da aldeia de Cabeça, no concelho de Seia, que este ano se promove como aldeia Natal 2014. A ideia foi prosseguida pelos habitantes da aldeia e consistiu numa proposta para vestir de Natal este aglomerado de montanha, com todos os trabalhos de decoração e enfeites a serem produzidos pelos próprios. Os materiais utilizados provém da região e a cor é dada pela lã da serra da Estrela, cedida por diversas empresas têxteis da região. O sucesso foi tal que o n.º de visitantes à aldeia já ultrapassou os 15 mil e o n.º de entradas na página divulgadora do evento já ultrapassava ontem as 61 mil.
Em paralelo aconteceu a “vila Natal”, assumida por Óbidos, dentro de um espírito comparável e com semelhantes e assinaláveis níveis de sucesso.
Como não poderia deixar de ser, Álvaro Amaro, com um sentido de oportunidade inversamente proporcional à originalidade que o caracteriza, não resistiu a batizar de imediato a nossa cidade de “cidade Natal”. Ou seja, está finalmente completo o círculo do karma que há-de puxar o nosso astral para o céu. Tínhamos uma aldeia, tínhamos uma vila e agora, graças à criatividade de Álvaro Amaro, até vamos ter uma cidade. É caso para se dizer que, finalmente, já podemos morrer realizados!
O problema é que, enquanto morremos e não morremos, este país corre o risco, devido ao incontrolável ímpeto festivo do nosso brilhante autarca, de vir a ser confundido com uma árvore de Natal ornamentada com artefactos comprados numa qualquer loja chinesa da esquina. Amaro, qual senhor feudal do condado, vai promover um programa natalício que incluirá muita animação, luz e cor. Tudo com os altos patrocínios da China agora capitalista. De acordo com o nosso excelso presidente, o evento surge no seguimento da aposta do ano anterior na iniciativa "Guarda, Ar de Natal". Ou seja, depois da inventona do ar engarrafado, que como todos sabemos produziu tantos efeitos positivos na nossa vida que eles nunca mais acabam de suceder, chegou, para nossa incontida felicidade, a cidade Natal. Para fazer jus à coisa, o lema será "A Guarda - o ponto mais alto de Natal". A cerejinha no cimo do bolo consiste em propostas como a do enfeitamento das janelas com motivos da quadra festiva por parte dos munícipes, um lanche social que não se sabe se incluirá chá e canasta, e uma iniciativa para uma cantoria de janeiras à própria autarquia!
A esta altura do campeonato, confesso-vos que já estou meio confuso com tanta minudência propagandística. Se calhar é mas é tudo inveja minha por não ser eu o autor das brilhantes ideias a materializar por Álvaro Amaro. Mais, sinto-me tão confuso que até já me revejo na pele daquele ladrão da história do Bocage. Ainda se lembram dela? Então eu conto.
Bocage, ao chegar a casa um certo dia, ouviu um barulho estranho no quintal. Chegando lá, constatou que um ladrão tentava levar os seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com os seus amados patos, em vez de lhe assentar meia dúzia de arrochadas, disse-lhe, imbuído de tolerância e paciência:
-Oh, bucéfalo anácrono! Não te interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo... mas se é para zombares da minha elevada prosopopeia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com a minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.
E o ladrão, confuso, disse: Oh! Doutor, afinal levo ou deixo os patos?

Como a prosápia de Álvaro Amaro não chega, nem por sombras, aos calcanhares de um Bocage, nem eu costumo comer pato roubado pelo Natal, limito-me a desejar, aqui e a todos, uma boa semana…

(Crónica na rádio F - 1 de Dezembro de 2014)