segunda-feira, novembro 24, 2014

Ponto de vista

Começo esta minha crónica com uma declaração de intenções. Não sou dos que, quando o inimigo vai ao tapete e está em estado de agonia, o massacra ainda mais. Não, não sou. Em tudo na vida, até nas desgraças, é preciso saber ser e estar. Por isso confesso que se até não me espantaram as fotomontagens de José Sócrates agarrado a umas grades de prisão, com a legenda “Eu só sei que nada sei” colocada logo por baixo, me chocou o espetáculo que foi montado à volta da detenção em si. É que uma coisa são as emoções populares, outra bem diferente são as pulsões populistas.
Não tenho razões para suspeitar que Sócrates fugisse à justiça, caso soubesse que era procurado. Por isso, recordando que dias antes foram detidas mais três pessoas, a sua detenção em pleno aeroporto só pode justificar-se pelo risco de manipulação ou de destruição de provas após o desembarque. Ainda assim, o facto de desde o primeiro minuto se encontrarem no local jornalistas da imprensa escrita e das televisões, permite-nos perceber que alguém tratou de garantir que a detenção não passaria despercebida. E a justiça não deveria precisar de tal coisa…
Compreendo que os partidos, todos eles, tenham depois abordado o assunto com luvas de pelica. E não foi só por causa da conversa habitual de que “o que pertence à política é da política, o que pertence à justiça é da justiça”. Foi porque o que aconteceu nos envergonha a todos. Portugal é hoje notícia em todo o mundo, e não forçosamente pelas melhores razões. Por isso, qualquer partido que tentasse cavalgar esta onda, ficava a perder.
Não significa isto que o caso deva ser desvalorizado. Muito pelo contrário. Mas deve ser discutido pelas razões certas e sempre com respeito pela presunção de inocência. Assim, se os crimes vierem a ser confirmados, o resultado final será decerto bem mais incontestável e pedagógico. E olhem que bem precisados estamos, a crer num outro caso que vou contar.
Noticiou o Jornal de Notícias que a “Polícia Judiciária investiga ajuda de deputados do PSD a clínicas privadas”. A história resume-se em poucas palavras. Em Coimbra havia uma clínica a operar doentes do SNS e duas outras, concorrentes da primeira, que pretendiam fazer o mesmo mas que ainda não tinham conseguido obter autorização para tal. Até que os dirigentes das duas clínicas em causa recorreram à ajuda de dois deputados do PSD e, todos em conjunto, reuniram com o presidente da ARS do Centro. Como que por milagre, os contratos há tanto tempo almejados foram assinados logo no dia seguinte!
Esta história remete-nos para o velhinho “fator cunha” e só não chamou a atenção popular porque entretanto estoirou nos escaparates o escândalo dos vistos dourados e do caso Sócrates. E nisto de escândalos também há primeira divisão, liga de honra e campeonato distrital…
Convém além disso não esquecer que, com toda a probabilidade, foi a clínica que perdeu o monopólio que até aí detinha, quem fez chegar o assunto à comunicação social. É que a vingança por se perder um monopólio, afinal serve-se fria. Ou quente, conforme a opinião do ouvinte.
A verdade é que Portugal sofre de um deficit crónico de cidadania. E é isso que explica os numerosos escândalos a que temos assistido, que nos dariam seguramente a bota de ouro se o campeonato fosse o da corrupção e do compadrio. Dificilmente nos desalojavam do 1.º lugar europeu!
Por isso o problema não é político. Ou antes, não é partidário. O problema está no “sistema”, aquela coisa que nos governa há décadas. E o “sistema” somos todos nós. Enquanto a maioria dos portugueses continuar a achar que questionar, participar e denunciar “só dá chatices”, vamos ter cenas destas. E aí, quem estiver limpo que atire a primeira pedra.

Agora segue-se a novela habitual. Piadas em que Sócrates se questiona se não deveria ter antes melhorado o parque prisional em vez do parque escolar, ou se foi boa ideia ter inaugurado o Campus da Justiça onde agora vê abrir-se um abismo por baixo dos pés. A justiça, essa, vai andar devagar, devagarinho, parada. Como é costume. Muito bom dia a todos!

(Crónica na rádio F - 24 de Novembro de 2014)