segunda-feira, novembro 10, 2014

Ponto de vista

Foi publicado em Diário da República o Programa de Estágios Profissionais na Administração Local, que contará com 1 500 vagas no próximo ano. O programa destina -se a jovens licenciados até 29 anos de idade que estejam à procura do primeiro emprego ou que tenham a infelicidade de já estarem desempregados.
Será dada primazia, no contexto da administração local, às funções prioritariamente correspondentes à carreira de técnico superior do regime geral da função pública. Aos estagiários será concedida uma bolsa de estágio, a fixar por portaria, e será pago o subsídio de refeição.
O estágio não garante um emprego na administração local, mas alegrem-se, porque no futuro dará prioridade no recrutamento através de concurso. Isso mesmo! Sabendo-se como estas coisas funcionam, é quase premonitório que o diploma faça referência, e passo a citar de memória, aos “métodos de seleção diferenciados mas assegurando a sua transparência e isenção, através da integral publicitação dos critérios de avaliação, e garantindo um processo transparente e rigoroso na distribuição dos estágios pelas autarquias e no acompanhamento dos estágios”. Ora toma lá! É isso mesmo que estão a pensar. Promete-se rigor nos concursos públicos e, para o garantir, nada melhor do que escolher candidatos que já fizeram o dito cujo estágio, cheiinho de isenção e de transparência...
Como diria o povo, é um diploma que dá aos lobos a faculdade de começarem a escolher as ovelhas que hão-de meter no redil. Vamos assistir a mais uma daquelas chico-espertezas à portuguesa, em que o recurso a este tipo de expediente vai servir, mais tarde, para “legitimar” através do tal concurso público o acesso de quem se queira a um lote de empregos hoje tão raros como difíceis de alcançar.
E garanto-vos que vai ser tudo absolutamente legal e à prova de qualquer escrutínio. Só vão contratar gente competente e absolutamente honesta, “que até fez um estágio”. Como é aliás costume no nosso país.
Confesso-vos que o que me irrita mais nem é isto. É que os filhos, amigos e conhecidos dos autarcas, por mais incompetentes ou potencialmente corruptos que sejam, também têm direito constitucional a um emprego. O que me incomoda verdadeiramente é que estes expedientes sejam usados para mascarar os números do desemprego e para promover a propaganda demagógica a que vimos assistindo ultimamente.
Não basta o facto de uma parte significativa da alegada melhoria desses números provir do fenómeno da sazonalidade. Ou de esses números não incorporarem o abate decorrente de jovens que continuam a emigrar não oficialmente em grandes números. Ou que não se tenha em conta as pessoas que simplesmente desistiram de ter esperança, seja pela idade ou pela fraca qualificação escolar e profissional, ou até pelas duas coisas em simultâneo. Agora até estes estágios contam como empregos!
Além disso, mesmo que os números fossem reais, e está visto que não são, não incorporam a parte mais importante da questão: a qualidade do emprego que temos. Como sabemos, cada vez mais empregos roçam a indignidade da escravatura. Trabalha-se, vive-se e morre-se com o medo de se perder uma porcaria de emprego, apenas porque não temos alternativa.
Eu pergunto: que percentagem dos portugueses é que está verdadeiramente satisfeita com o emprego que tem, quando ele existe?
Ora, é esta questão que o governo e até o PS nunca querem discutir. Porquê? Porque para eles, felicidade não tem nada a ver com o emprego que se tem e com a dignidade que ele nos proporciona. Felicidade tem muito mais a ver com o lucro, o dinheiro que se tem e coisas do género.
Para a direita, o dinheiro é simplesmente a medida de todas as coisas.

Eça de Queiroz, que compreendia como ninguém estas coisas, disse no seu tempo que este governo não cairá porque não é um edifício, só sairá com benzina porque é uma nódoa. Eu digo mais. Este governo só cai mesmo se no fim pusermos fogo à benzina. 
Um bom dia para todos.

(Crónica na rádio F - dia 10 de Novembro de 2014)