segunda-feira, novembro 03, 2014

Ponto de vista

As sociedades humanas, pelo menos as que se consideram civilizadas, gostam de fazer alarde da sua democracia representativa. Aliás, é hoje um dado consensual em muitos países que uma sociedade só é civilizada se for democrática. No entanto, esta não passa de uma forma algo redutora de vermos as coisas, usada sobretudo para repouso da nossa consciência.
O que define uma sociedade civilizada não é afinal a democracia, mas antes a civilidade. Ainda que a primeira não exista sem a segunda. Vou dar-vos um exemplo de como uma sociedade pode ser democrática e, ainda assim, não ser convenientemente civilizada.
Há uns anos, comandava Abílio Curto os destinos da autarquia da Guarda, decidiu-se cortar umas quantas árvores centenárias para permitir a instalação de um posto de abastecimento de gasolina. Logo se levantou, e muito bem, um coro de protestos contra o abate das ditas árvores.
Agora, para se construir uma rotunda de duvidosa eficácia e garantida fealdade urbanística, visando resolver o problema de acesso a um bairro da cidade, cortaram-se igualmente árvores centenárias de porte considerável.
O curioso é que vivendo nós, como há uns anos, numa democracia representativa, não se assistiu desta vez a qualquer protesto contra o abate de árvores tão veneráveis como aquelas de que falei primeiro.
Significa isto que a nossa democracia é hoje menos representativa do que no tempo de Abílio Curto? Não. Significa é que tem cada vez menos qualidade. Ou, por outras palavras, há cada vez menos democracia, embora a que exista represente cada vez melhor certos interesses.
Não interpretem isto como um particular elogio ao fervor democrático de Abílio Curto, que valia aquilo que todos bem sabemos, ou uma acintosa crítica ao desrespeito de Álvaro Amaro pelos valores da civilidade, que já era então tão grande como é hoje.
Quero com isto dizer que o que tem vindo a piorar não são os políticos, que sempre foram da pior qualidade. É o povo meus senhores, ou seja, é cada um de nós que se tem vindo a “descivilizar”.
Por isso não admira que se assista a uma cada vez maior degradação urbanística, de que é exemplo a proliferação de esplanadas e de outro tipo de aconchegos pelos passeios da nossa cidade.
Aos poderes instalados pouco importa que uma cidade, uma rua, uma praça, detenham também a função de educar e de contribuir para uma certa harmonia da comunidade. E ao povo cada vez menos importa que os poderes instalados não se importem nada com aquilo que deviam.
Não invoco aqui o total desrespeito pelos direitos de cidadãos com dificuldades de mobilidade, nomeadamente os invisuais ou os deficientes motores, para quem a fruição de um passeio público equivale hoje quase ao atravessamento de um campo de minas na Síria. Limito-me a invocar o respeito pelo mais elementar bom senso e pelo brio que qualquer sociedade civilizada e pujante deveria querer cultivar.
Uma sociedade que publicita os nomes dos cidadãos que, muito à custa de uma crise que afeta particularmente os mais vulneráveis, não conseguiram pagar a conta da água, mas que permite coisas como aquelas a que acabei de me referir, é simplesmente uma sociedade de parolos.

Importa por isso perceber que, parolos, há muitos. Há os estúpidos e os espertos. Os primeiros normalmente fazem de povo, os segundos costumam ir para políticos. E entre os do povo há infelizmente ainda, como dizia fleumaticamente um satirista e panfletário austríaco, os que são imbecis superficiais e os que são imbecis profundos. Quanto aos políticos, podem até ser espertos, mas não deixam de ser parolos. A mistura das duas qualidades criou uma nova casta, a dos idiotas. São aquele tipo de gente que por mais parola que seja, conseguirá sempre achar que os outros são ainda mais parolos do que eles! Ou coisa parecida. 
Muito bom dia a todos.

( Ponto de vista, na rádio F - 3 de Novembro de 2014)