quinta-feira, setembro 18, 2014

Crónica de uma feira da ladra e outras loucuras

Com a primeira sentença do caso “Face Oculta” virou-se uma página na história recente do país amargurado que é hoje Portugal. Aparte os meandros do processo, que a maioria de nós apenas conhece através do filtro nem sempre isento da comunicação social, fica para registo a condenação a uma pena de prisão efetiva de cinco anos de Armando Vara, personagem que, no seu tempo, foi incontornável nos mais altos círculos do poder. Do que está para vir nem vale a pena falar, até para não estragar a crónica.
É impossível não recordar aqui a célebre frase de Lord Acton de que «se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente». No fundo, é da história do mundo que falamos e, por inerência, da essência da própria natureza humana.
A resistência à corrupção (já nem sequer falo do combate à dita cuja) obriga a uma estrutura mental individual tão peculiar e simultaneamente frágil que só sobrevive de forma estatisticamente significativa em países com um tecido social e legislativo muito apurado. Em suma, a resistência à corrupção implica, desde logo, um sistema educativo verdadeiramente vocacionado para a cidadania, mas também a construção de aparelhos financeiros, administrativos, fiscais e jurídicos à altura de uma tarefa quase impossível num país do sul da Europa.
A provar a dificuldade daquilo que falo estão os diversos incidentes caricatos que trespassaram este processo. Desde caixas de robalos a escutas que ninguém deveria ter produzido, passando por um pífio elogio final da procuradora-geral da República àqueles que marcaram os golos deste jogo e que não fizeram mais do que a sua obrigação, houve um pouco de tudo. Aquilo que deveria ser rotina e asséptico transforma-se, no país da bola e das touradas, numa espécie de paródia de ópera bufa.
Dizem os entendidos que a corrupção é um peso morto que a economia arrasta com sangue, suor e lágrimas. Recordo-me de há uns anos ter lido algures que se a corrupção acabasse por artes mágicas em Portugal passaríamos imediatamente a ter o nível de vida existente na Finlândia. Isto representaria uma subida de cerca de 40% para todos nós. 40% de aumento nos salários reais, 40% de aumento no poder de compra, nas reformas, na qualidade de vida e por aí fora. Quem ficaria a perder seriam aqueles que nos últimos 40 anos têm vivido como nababos num país de remediados.
Isto remete-nos para uma questão mais profunda: como é possível que as coisas sejam assim? A resposta conduz-nos ao povo. Portugal é, de facto, um país de corruptos. A começar pelo povo, que preferiu adaptar-se a combater o fenómeno.
Edmund Burke, político e filósofo irlandês do século XVIII e contemporâneo de Lord Acton, autor de obras como “A Vindication of Natural Society: A View of the Miseries and Evils Arising to Mankind”, afirmou um dia que no meio de um povo geralmente corrupto a liberdade não pode durar muito. Defendia por isso que a liberdade também deve ser limitada, a fim de poder ser possuída. O Marquês de Maricá defendia, de forma bem mais popular e brejeira, que um povo corrompido não pode tolerar um governo que não seja corrupto. E isto diz tudo da coisa.
Confesso-vos que as condenações deste caso, que ainda havemos de ver se perduram, não me satisfizeram particularmente. Não porque ache que não foram merecidas. Mas por remeterem para uma suspeita generalizada de que foram apenas uma exceção num universo de impunidade enraizada.

É nestas alturas que me assalta aquela vontadezinha de ser ditador. O que eu não faria então... O problema é que as penas eram capazes de não ser só de 5 anos e não haveria prisões que chegassem. Por isso, antes que alguém me chame de louco, vou limitar-me a sonhar. É verdade que a sociedade perdoa mais facilmente a um criminoso do que a um sonhador. Mas pelo menos o louco tem inimigos, enquanto o sonhador se tem a si próprio. E isso, por agora, basta-me.

Crónica publicada no jornal "O Interior" a 11 de Setembro 2014.