quarta-feira, abril 23, 2014

Ponto de vista

Aproxima-se a data que marcou para sempre as nossas vidas. O 25 de Abril de 1974! 
Sucedem-se, a ritmo alucinante, comemorações, evocações e outras coisas que tais. 
Nuns casos é notório o desejo de alguns se colocarem em bicos de pés, só para que dêem por eles. 
Noutros vislumbra-se a hipocrisia de quem nos quer fazer crer que até respeita a democracia, apesar de na prática suportar uma ditadura económica e social das mais ferozes e sanguinárias dos tempos modernos. 
No meio, o povo anónimo, que olha estupefacto para o desenrolar de tudo isto.
Vem a propósito um episódio que ilustra bem a forma como certa gente, de barriga cheia, olha para o 25 de Abril. 
Um dia destes a presidente da Assembleia da República afirmou que se os militares da Associação 25 de Abril não forem ao Parlamento nas comemorações do aniversário dessa data, "o problema é deles".
A doutora Assunção Esteves está equivocada. 
O problema não é "deles". 
O problema é da senhora presidente da Assembleia da República que não quer correr o risco de ouvir verdades que não lhe agradem. Prefere por isso o sossego da rotina, que por sinal já cheira a podre.
O problema é da senhora presidente da Assembleia da República, que, com muita falta de bom senso, se esquece de que só se senta na cadeira em que se senta porque os militares que ela não quer ouvir um dia arriscaram a sua vida para que tal fosse possível.
O problema é da senhora presidente da Assembleia da República que, com fraca memória, se esquece que desta vez se comemora uma data redonda - 40 anos - sobre o dia da revolução, pelo que seria totalmente admissível que se permitisse, que fosse também dada voz aos militares que abriram o caminho para a existência desta Assembleia da República.
O problema é da senhora presidente da Assembleia da República porque, se não fosse tão mal agradecida, se recordaria de que a soberba reforma que hoje aufere por ter sido juíza do Tribunal Constitucional durante alguns anos só é possível porque os militares que não quer agora ouvir permitiram que tal fosse possível.
Pensando melhor, contudo, talvez o problema não seja da senhora presidente da Assembleia da República. Talvez o problema seja mesmo do país que aceita ter como segunda figura do Estado alguém que já demonstrou - por várias vezes - não ter um pingo de bom senso.
Assunção Esteves é uma personagem no sentido plano e caricatural do termo. Nos romances, as Assunções surgem nos capítulos secundários para darem um colorido sociológico ou histórico ao cenário onde a personagem principal actua. Ora, Assunção Esteves representa o colorido cómico de um certo Portugal, o Portugal da comédia snob e do nariz empinado por questões de nascimento. 
Sim, é o Portugal que brinca aos pobrezinhos, mas também é o Portugal que quer brincar aos riquinhos. 
Assunção Esteves encaixa na segunda espécie. 
Julgo que aqueles que brincam aos pobrezinhos têm uma palavra gira para descrever esta segunda categoria: possidónios. Palavra giríssima, como diria qualquer tia de Cascais.
À segunda figura do estado custa recordar que o seu pai era alfaiate. Aquilo que deveria ser motivo de orgulho para um cidadão normal é para ela motivo de vergonha. Como é evidente para qualquer possidónio, a filha de um pobrezinho não pode chegar ao topo, é contranatura.
Os regimes mudam, mas este Portugal não morre. 
A comédia social parece ter o dom da imortalidade. 
Tal como no 24 de Abril, ainda temos por aí fidalgos a viverem em bolhas sem qualquer contacto com a realidade. 
Fidalgos wannabe , como dizem os ingleses, que querem à força brincar aos riquinhos, sobretudo porque nunca digeriram convenientemente uma revolução que um dia os meteu a ridículo e que gloriosamente os humilhou.

Tenham um bom dia apesar de alguns disparates hilariantes que por aí se vão lendo e ouvindo.

(Crónica na Rádio F - dia 21 de Abril de 2014)