quinta-feira, abril 03, 2014

Ponto de vista

Esta semana o governo mostrou-se embaraçado com a revelação, por parte de alguns órgãos de comunicação social, de que a célebre Contribuição Extraordinária Social aplicada às reformas passaria de provisória a permanente. Eu, pelo contrário, não fiquei nada embaraçado. É que lembro-me muito bem de que este governo tem por primeiro-ministro alguém que, em tempos de campanha eleitoral, jurava a pés juntos que nunca, em tempo algum, procederia a aumentos de impostos ou a cortes nos vencimentos ou nos subsídios de natal e de férias.
Somos governados por pessoas que não têm palavra, vergonha ou escrúpulos. Dizem tudo o que lhes vier à cabeça, desde que acreditem que isso os ajuda a manterem-se no poder. E o pior de tudo é que, porque aquilo que cada um julga adequado dizer varia com a sua própria perspectiva da vida, uns dizem uma coisa e outros dizem outra completamente diferente. É o que acontece quando a luz condutora do processo deixa de ser a verdade.
Por isso, à cautela, a política consiste agora em apalpar primeiro e aplicar depois. Os cortes são servidos aos bocadinhos, uns a seguir aos outros, como se fossem o último antes da recuperação económica. Contudo, quem percebe de gastronomia política já compreendeu que esta estratégia encaixa menos na sobremesa do que nos aperitivos de uma austeridade que continuará a ser-nos servida por muito tempo.
O problema de fundo é que as reformas são o resultado de um sistema cujo equilíbrio dependia, até agora, dos salários sobre os quais incidiam os descontos que as financiavam. Assim, de cada vez que se baixam salários, provoca-se a prazo um corte idêntico nas reformas, o qual se vai somar aos que já são decididos por via arbitrária e política.
A culpa, pretende-se, é da demografia. O governo não explica que compaginando a demografia com o progresso tecnológico, os equipamentos produtivos, que substituíram cada vez mais a mão-de-obra humana, deveriam, também eles, contribuir para o financiamento das reformas.
A demografia é um resultado directo do progresso social e tecnológico na Europa e Estados Unidos. Não é forçosamente uma coisa má. E quando é, é-o por culpa de políticas desajustadas dos governos, assentes no imediatismo do lucro e na ganância dos mercados, que arrastam a desprotecção social e económica dos trabalhadores e respectivas famílias.
O mais trágico é que o governo se queixa por ter cão, e por não ter. Queixa-se da falta de jovens, mas queixa-se também do seu excessivo número, razão pela qual os aconselhou a emigrarem. Tem em mãos uma taxa de desemprego jovem de 40%, mas não tem qualquer solução para os colocar a descontar para as reformas dos mais idosos e deles próprios.
À incompetência e à cegueira ideológica do governo, do nosso e de outros, soma-se um perverso círculo vicioso de inflexão no crescimento da massa salarial, iniciada com a adesão a um euro que transferiu para a esfera laboral os mecanismos de ajustamento que deixaram de poder fazer-se através da desvalorização cambial. Este processo tem sido comandado por uma quadrilha de autênticos delinquentes banqueiros.
As relações laborais foram alteradas pelo menos três vezes, todas elas direccionadas para a redução dos salários e desvalorização das carreiras sobre as quais se realizam os descontos que por sua vez financiam a Segurança Social e os serviços públicos.
A história já viu muitos impérios caírem por menos. No caso presente o que me preocupa é viver no próprio tempo em que tudo acontece. Tenho consciência de que, por este caminho, vou acabar os meus dias sem reforma, sem direitos e sem dignidade alguma.
O que me pergunto é se todos os que defendem ou toleram as medidas do governo têm a mesma consciência relativamente ao que os espera.

Diz a Bíblia que o insensato é insolente e seguro de si. Para mim basta saber que a atitude de tal gente, afogada na sua mórbida existência, não passa de uma forma de hipertrofia da razão. 
Tenham um muito bom dia!

(Crónica na Rádio F - dia 31 de Março de 2014)