quinta-feira, março 20, 2014

Ponto de vista

A semana que findou ficou marcada por vários acontecimentos que, ainda que aparentemente dissociados, relevam a hipocrisia da politiquice em que se transformou a governação do reino de Portugal.
Por um lado, a prescrição dos crimes de que vinha acusado o banqueiro Jardim Gonçalves - burla e falsificação de documentos – e que lhe haviam valido a aplicação de uma multa de um milhão de euros e dois anos de cadeia. Tudo foi perdoado, coisa que já vai sendo hábito sempre que estão em causa ricos e poderosos.
Por outro lado, João Rendeiro, outro banqueiro igualmente acusado do mesmo tipo de crimes, também já está na calha das prescrições. Só que aqui falamos de uma multa de 4 milhões de euros. É como se uns casos andassem à boleia dos outros.
Como se não bastasse este triste espetáculo da impotência do Estado para fazer cumprir as leis junto do tipo de gente que ajudou a colocar o país no buraco em que ele se encontra, vem agora o Ministério Público reconhecer publicamente que também no caso «Face Oculta» não haverá ninguém a ir para a prisão. Que sosseguem Armando Vara e Penedos & C.ª. É mais fácil fazer passar um camelo pelo buraco da agulha, do que mandar gente desta para a cadeia.
Pelo meio roubam-nos salários, reformas, pensões, apoios sociais, justiça, serviços de saúde, de educação, etc. O facto de ser possível que a estes senhores se perdoem mais milhões do que os cortes que nos fazem, diz tudo sobre o lamentável estado a que chegou o nosso Estado.
O pior é que o problema já não é só a metáfora de termos o ladrão dentro do cofre. O problema já consiste no facto de o ladrão da metáfora se achar no direito de mandar calar quem o incomode. Vem a isto a propósito da polémica suscitada pela iniciativa de um grupo de cidadãos que assinou um manifesto propondo a reestruturação da dívida portuguesa. Recordemos que Cavaco Silva, bem como Passos Coelho e Paulo Portas, passam a vida a falar na necessidade de consensos. Quando, pela primeira vez em muitos anos, se junta um grupo de 70 individualidades dos mais variados quadrantes políticos, da esquerda à direita, para consensualmente apontar um caminho, aqui d`el Rei que temos por aí os traidores à porta.
O poder instituído, que lá no fundo sabe bem como a dívida pública é absolutamente impagável nos termos atuais, reagiu com o mesmo pudor de um ladrão sem vergonha apanhado no ato: com irritação. Cavaco demitiu dois assessores. Passos Coelho vociferou contra o manifesto e contra quem pensa diferente. De Portas nem falo. Para esta gente os consensos só existem quando são os deles. O resto é terrorismo.
Nem sequer vou aqui discutir o falso argumento do sentido de oportunidade. Até porque nunca vi ninguém do poder reconhecer oportunidade a algo que não lhe agrade ou para o qual não tenha resposta. Vou tão só falar do que nos espera.
O problema de Cavaco e de Passos, que é diferente do problema dos portugueses, tem exatamente a ver com a manutenção do poder. A estratégia consiste em empurrar a dívida com a barriga, fazendo simultaneamente crer, até tão tarde quanto possível, que ela ainda é pagável. Sócrates tentou essa estratégia com o PEC 4 e falhou. Cavaco e Passos só pedem a Deus que, quando a sua também falhar, já lá não estejam.
O problema dos portugueses é outro, uma dívida pública que arrasa o investimento público e privado e que a prazo pode ditar salários “à chinesa”, hipotecando o futuro de milhões e fazendo aumentar ainda mais os números da já astronómica emigração em massa.
Esse oásis para capitalistas sem escrúpulos, assente numa escravatura dos tempos modernos, é o sonho dos mercados. Aqueles que nos governam e fazem as leis que permitem aos nossos ricos fugir à justiça, obrigando os pobres a passar pelo buraco da agulha, são apenas os agentes de tal pesadelo.
Parafraseando Antero do Quental, Portugal cometeu muitos erros ao longo da história: o conservadorismo religioso e inquisitório da Contra-Reforma dos séculos XVI e XVII que sufocou o pensamento inventivo e a razão crítica, a centralização política imposta por recorrentes períodos de domínio absoluto que encorajou a submissão e a resignação, o sistema económico dos Descobrimentos cujos benefícios intoxicantes desviaram os portugueses da ideia de uma gestão financeira prudente.
Eu vou ainda mais longe. Desde a expulsão dos judeus, no fim do século XV, passando pela funesta aventura de D. Sebastião em Alcácer Quibir, até ao esbanjamento do ouro do Brasil, Portugal é o melhor exemplo para uma cartilha do disparate.
Nos tempos modernos, o ouro do Brasil foram os fundos comunitários. Com os resultados que se viram, por sinal numa altura em que o atual presidente da República era o primeiro-ministro. O que não augura nada de bom para as suas opiniões anti manifesto. Porque ela prova que os consensos afinal eram só para inglês ver.
Ou, para os mais crentes, somos simplesmente um reino do disparate onde a rainha está gagá e é o chanceler quem vai nu. Com manifesto ou sem ele.

Tenham um bom dia e, no que nos deixarem, uma óptima semana.

(Crónica na Rádio F - 17 de Março de 2014)