quarta-feira, março 19, 2014

Eunucos, Multas e Espertalhões

O recente decreto judicial de prescrição das várias condenações do Banco de Portugal ao ex-presidente do BCP, Jardim Gonçalves, é a prova de que, quando achamos que o país já não pode cair mais fundo, cai mesmo.
A história conta-se em poucas palavras. Em causa estão acusações de prestação de informação falsa e de falsificação de contas do BCP durante vários anos. A entidade supervisora, o Banco de Portugal, acusou Jardim Gonçalves de nove infrações graves, daí resultando a aplicação de uma multa de um milhão de euros e a proibição, por nove anos, do exercício de funções no setor financeiro. Após muitas peripécias judiciais que aqui não vou descrever, mas que já nos habituámos a associar às elites políticas ou financeiras, a multa prescreveu à custa de uma natural morte morrida.
Se não fosse demasiado grave, seríamos até tentados a rir perante a total ineficácia de um sistema de entidades reguladoras e tribunais, que supostamente existe para nos defender de vigaristas e outros que tais. Confesso que pelo meio se me partiu a alma ao ouvir a afirmação do advogado de Jardim Gonçalves de que «ganhar na secretaria» [extinção do processo] «era tudo» o que Jardim Gonçalves «menos queria».
Claro que Jardim Gonçalves preferia ter ganho sem ser na secretaria, o que, a acontecer, também não teria espantado ninguém. Para imaginarmos como seria, basta recordar o caso dos submarinos, no qual ocorreram várias condenações e detenções na Alemanha após ter sido provada a existência de corrupção, enquanto em Portugal tudo acabou em águas de bacalhau e muita seriedade com direito a certificado.
Do outro lado da barricada deste circo encontra-se uma imensa mole de zé-povinho a quem não são permitidas quaisquer veleidades. Só para que conste, um amigo meu foi recentemente condenado a pagar uma multa de 132 euros à Autoridade Tributária por se ter enganado no preenchimento da sua declaração de IRS e declarado mais 70 euros do que devia! Claro que poderia sempre ter impugnado a multa em sede judicial. Tal como Jardim Gonçalves, é até muito provável que visse a dita cuja ser um dia devorada pelo monstro da prescrição. O problema é que gastaria dez ou vinte vezes mais, enquanto Jardim Gonçalves gastou dez ou vinte vezes menos.
Esta perversidade do sistema estimula ao incumprimento da lei na proporção direta dos valores envolvidos. Assim, quanto maior o crime, menor a probabilidade de alguém vir um dia a ser punido.
A consequência é que a sociedade se divide hoje em dois tipos de gente. De um lado estão espertalhões que se comportam como malabaristas financeiros. Do outro está uma imensidão de desgraçados que montam e desmontam o circo, suportando o fardo de autênticos eunucos fiscais. Sofrem, protestam, esperneiam, mas não têm como fugir ao seu destino fatal.
A circunstância de eu integrar este segundo grupo não me deixa nada confortável. O pior é que a alternativa do primeiro grupo também nunca se me colocou, vá-se lá saber porquê...
«Os eunucos devoram-se a si mesmos, não mudam de uniforme, são venais/E quando os mais são feitos em torresmos, defendem os tiranos contra os pais/Em vénias malabares à luz do dia, lambuzam da saliva os maiorais/E quando os mais são feitos em fatias, não matam os tiranos, pedem mais».

Não me revejo em todas estas sábias palavras de Zeca Afonso. Mas lá que há por aí muita gente que sim, isso há. É que se assim não fosse, nem aconteciam coisas destas.

(Crónica no jornal O Interior, 13 de Março 2014)