segunda-feira, fevereiro 24, 2014

Chips, mentalidades e totós

Maquiavel, na sua obra “Discursos de Tito Lívio”, avisava que «a ambição do homem é tão grande que, para satisfazer uma vontade presente, não pensa no mal que daí a algum tempo pode resultar dela». Esta constatação acerca do lado negro da natureza humana causa-me sempre calafrios e faz-me suspeitar, agora que se fala tanto nos quadros de Miró, que estamos a tratar de muito mais que os 36 milhões de euros que o governo esperava obter com a sua venda.
Não vou aqui alongar-me sobre os pormenores da trapalhada, sobre a qual já quase tudo foi dito. Claro que o governo descaiu para a alarvice, à moda daqueles campónios que, de esfomeados que andam, açambarcam comida em casamentos. Claro que violou todas as leis que encontrou pelo caminho, exportando os quadros como se de um qualquer negócio de narcotráfico se tratasse. Claro que tem uma agenda ideológica contra a cultura, ou antes, contra qualquer cultura que não seja a sua.
Isto percebe-se muito bem da parte de quem acha que cultura e mercados são mais ou menos a mesma coisa. De quem nunca considerou a possibilidade da manutenção desta obra em Portugal poder representar, a prazo, uma mais-valia cultural e turística com um valor muito superior aos malfadados 36 milhões de euros. De quem consentiu que os quadros fossem embora sem nunca serem mostrados.
Atrevo-me a suspeitar que, se por qualquer malabarismo da história, se descobrisse agora que o BPN tinha também deitado a mão ao testamento de Cristo, à certidão de nascimento de D. Afonso Henriques ou a uma carta de amor do infante D. Henrique, o governo também vendia. E se fosse por mais de 36 milhões, ainda vendia mais depressa!
Mas o PS não tem razões para sorrir. Pode até ter tido o mérito de ter encravado, com a iniciativa de alguns dos seus deputados, todo este processo. Mas a revelação de que, já no tempo de Sócrates, se iniciou a venda da obra, revela apenas as cambalhotas a que a política obriga. Podem agora Gabriela Canavilhas e Teixeira dos Santos vir dar murros no peito, garantindo que nada sabiam. O problema é que o PS só foi contra a saída dos quadros porque hoje é oposição. Se fosse governo, faria exatamente a mesma coisa. Só não acreditam nisto os totós e os militantes do partido.
Quando Passos Coelho, a propósito do assunto, afirmou que precisamos de um chip de nova mentalidade, fiquei sem saber se devia rir ou chorar. Até porque nem sei se é de comédia ou de tragédia que falamos quando discutimos esta questão.
Mas lembrei-me logo que Miró, tendo escorado a sua obra na força do surrealismo, foi também influenciado por outros movimentos, como o cubismo, o fauvismo e o dadaísmo. E este último reconheceu que o principal problema das manifestações artísticas era almejar algo que é impossível, como por exemplo explicar o ser humano. Quiçá, a pensar já em certos artistas da nossa praça…
É por isso que eu não sou capaz de explicar a razão para Passos Coelho acreditar que ainda nos pode cantar a canção do bandido. Quando o PS nacionalizou o BPN, deixando fugir os bens e ativos da Sociedade Lusa de Negócios, não consta que o PSD tenha manifestado descontentamento com tal solução. Por isso os 36 milhões de euros não deviam vir da venda dos quadros. Deviam vir dos bolsos dos amigos de Cavaco Silva que um dia deram um golpe bilionário num banco e em todos nós!
«Mais importante do que a obra de arte propriamente dita é o que ela vai gerar. A arte pode morrer, um quadro desaparecer. O que conta é a semente».
Estas palavras foram proferidas por Joan Miró i Ferrà, alguém que há cem anos enfrentou as forças anónimas da corrupção política e social. E que confraternizou com objetores de consciência e outras más companhias da época. Só por isso, nunca teria agradado a Passos Coelho. Mas pelo menos não era tótó, nem sonhava com chips.
(artigo publicado no jornal O Interior em 13 de Fevereiro de 2014)