quinta-feira, janeiro 23, 2014

Ponto de vista


É a partir deste mês de janeiro que muitos portugueses, trivialmente denominados de funcionários públicos, vão sentir na carteira os cortes decretados pelo governo. Como as contas deste rosário têm sido adornadas com falácia que baste, reflitamos seriamente naquilo que está em causa.

Com o aumento não remunerado, de 35 para 40, do número de horas semanais de trabalho, estes funcionários sofreram em 2014, de um só golpe, uma redução relativa da sua remuneração em cerca de 14%.

Depois há ainda que somar, se o Tribunal Constitucional o vier a permitir, o corte salarial entre 2,5 e 12%, que originará diferenças entre salário bruto e salário líquido que chegam a ultrapassar os 50%.

A isto acresce um aumento de 1% na contribuição para a ADSE.

Ora, aqui chegados, deixemos a propaganda à porta e atiremo-nos à matemática.

Tomemos o exemplo de um funcionário público, solteiro e sem filhos, que vença um salário bruto de 700 euros. A redução salarial em 2014 será de 164 euros, aumentando 21 euros em relação à que vigorou em 2012.

Só que a comparação não pode ser assim tão pacífica. Como o funcionário agora trabalha mais uma hora por dia, tem de se entrar em linha de conta com este novo fator. O funcionário deveria agora ser remunerado, de acordo com uma regra de três simples que incorporasse essas 5 horas semanais adicionais, com 800 euros brutos por mês, em vez de 700.

Ou seja, o funcionário público em causa vai perder, não 21 euros por mês em relação a 2012, mas sim 121 euros mensais, representando mais de 15% daquilo que deveriam ser os merecidos 800 euros.

Isto bate certo com os tais 1% para a ADSE e os 14% de trabalho gratuito, sem sequer entrarmos em linha de conta com o facto de não haver qualquer acompanhamento compensatório da inflação, o que é mau.

Também bate certo com outros indicadores. Sabe-se hoje que a perda de emprego e os cortes salariais foram responsáveis por 31% dos mais de 29 mil pedidos de auxílio recebidos pela DECO em 2013. Trata-se genericamente de casos em que pessoas até aí cumpridoras foram, por via de uma dita “adaptação salarial” que não é da sua responsabilidade, transformadas naquilo que vulgarmente denominávamos de “caloteiros”. Porque sabemos que não o são, passaram, no politiquês hoje corrente, a ser pessoas que viviam “acima das suas possibilidades”.

Bate ainda certo com o futuro que este governo quer para Portugal. Arrasando com o militante e persistente ceticismo de alguns, finalmente há um rumo. É cada vez mais claro que se atingirmos os 40% de desemprego, um horário semanal de 50 horas sem direito a férias, e um salário mínimo de 100 euros, voltaremos a ter um período dourado. Pelo menos alguns.

Esta possibilidade, cada vez mais real, está a causar o pânico nas grandes potências que nesta área arriscam ser nossas concorrentes, como é o caso do Bangladesh, do Burkina Faso e da Costa Rica.

Os políticos destes países confessam agora o seu receio de a deslocalização para Portugal de grande parte das suas empresas trazer para o nosso país milhares de postos de trabalho especializados na área do emprego infantil e adolescente. Com toda essa juventude a dar ao dedo, a par de uma quase escravatura da restante população ativa, a taxa de desemprego global em Portugal arrisca-se a ser trucidada para números com que atualmente só podemos sonhar e que farão inveja a toda a Europa.

Há mesmo economistas mais visionários que começam a defender que o trabalho é um bem demasiado precioso para continuar a ser tratado com tem sido. Quem quiser trabalhar, deve simplesmente pagar.

Sim, porque num mundo verdadeiramente competitivo e moderno, não há lugar para relógios, resiliências ou outros esquemas epistemológicos. E muito menos para mandriões. Ou para funcionários públicos, que são mais ou menos a mesma coisa.

Uma boa semana para todos, dentro dos limites que nos são impostos.
 
(Crónica rádio F - dia 20 de Janeiro de 2013)