segunda-feira, outubro 14, 2013

Os Números, as Necessidades e as Leis

Depois de mais um foguetório eleitoral, chegou a hora de regressarmos à realidade. Vou apenas referir aqui alguns números e situações. Porque é preciso.
A dívida pública não cessa de aumentar, chegando já aos 127% do PIB.
O défice orçamental, que não deveria, de acordo com as exigências da troika, ultrapassar os 4% em 2014, atingiu, nos seis primeiros meses do ano, 7,1% do PIB.
O Eurostat calculou existirem no país, durante o mês de julho, 878 mil desempregados, sem sequer tomar em conta os números trágicos da emigração forçada.
A proteção no desemprego chega agora apenas a 44% das pessoas sem trabalho.
O valor médio das prestações de desemprego foi, no final de agosto, de cerca de 481 euros, à custa de uma redução de 4% em relação ao mesmo período do ano passado.
O número de beneficiários do RSI voltou a cair em agosto, existindo agora menos 30 mil pessoas a receber esta prestação do que no mesmo mês de 2012.
Perto de 1 500 crianças e jovens perderam o direito ao abono de família entre julho e agosto.
2 412 beneficiários do subsídio por educação especial, destinado a crianças e jovens com deficiência, perderam esta prestação social no mês passado.
A desvalorização salarial dos trabalhadores que foram ou que vão ser atingidos pelo aumento não remunerado do número de horas semanais de trabalho, de 35 para 40, alcança, na prática, um valor de 14%.
A mais recente alteração ao Código do Trabalho, em 30 de agosto, resultou numa intrincada teia de fórmulas que dificulta ao trabalhador perceber quanto receberá se for abrangido por um processo de despedimento colectivo, por um despedimento qualquer que se invente, ou simplesmente se vir caducar o seu contrato a termo.
E por aí fora. Poderia encher páginas e páginas com números destes. Em vão. É que tudo isto tem sido invocado em nome da necessidade. Sim, isso mesmo. A necessidade. E quando a necessidade é muita, até descobrimos que a Constituição atrapalha. Atrapalha tanto que um dia destes nem há-de ser necessária para nada!
Claro que esta necessidade, sendo para mim um mal maior que tudo o resto, só me suscita o pensamento de que não havia necessidade nenhuma de vivermos dela.
Bem sei que o Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego, falava em “reduzir as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de outrem”. E, se repararmos bem, até era capaz de ter alguma razão. É que há por aí gente que necessita como nunca. Necessitam de salários mais baixos. De pensões cada vez mais exíguas. De cada vez mais precariedade. De lucros cada vez maiores. Necessitam do medo, desde que esse medo seja dos outros. E do poder, desde que seja só deles. Necessitam, até sem precisarem. E tanto necessitam de tudo, como de coisa nenhuma.
É claro que Pessoa falava sobretudo das necessidades de que não precisamos. E de cada um reduzir as suas. Voluntariamente. Nunca de elas nos serem reduzidas, à força, por quem as tem maiores do que os outros. Mas como quem nos governa nunca deve ter lido Pessoa, números e necessidade são apenas as duas faces da mesma moeda. E por isso colocam a necessidade à frente de tudo. O homem, que eu até pensava ser a medida de todas as coisas, é hoje ultrapassado pela necessidade, que é agora a verdadeira medida de tudo. E por isso querem fazer dela a fonte de todas as leis.
O problema é que a necessidade transforma homens honestos em velhacos. É um obstáculo indestrutível que estilhaça tudo o que se lance sobre ela. Conduz as pessoas ao engano. E é a mãe de todos os vícios. Por isso mesmo, Santo Agostinho concluiu que a necessidade não tem lei. E eu acrescento que se tivesse, haveria de ser daquelas que proíbe tanto os ricos como os pobres de dormir sob as pontes, de mendigar nas ruas ou de roubar pão. E mais não digo. Porque nem há necessidade…


Jorge Noutel

(Crónica publicada no jornal "O Interior" - 09/10/2013)