segunda-feira, março 11, 2013

Crónica na rádio F

 
Àqueles que nunca acreditaram no milagre da ressurreição, veio esta semana o destino desferir um golpe fatal: Cavaco afinal ressuscitou, e, mais do que isso, até falou!
E a muitos!
No mesmo tom de quem nunca tem dúvidas e raramente se engana, o ressuscitado, sem chagas que se lhe vissem, quis logo dar lições de nada e de coisa nenhuma a crentes e a descrentes, deixando uns atónitos e os outros incrédulos.
Dúvidas ainda houvesse, ficámos a conhecer a teologia deste pretenso Redentor dos tempos modernos: quer fazer um segundo mandato sem turbulência. E, convenhamos, isso é obra que só se pode alcançar com recurso a um verdadeiro milagre e a ajuda de santos.
Cavaco ficará para a história como alguém associado, direta ou indiretamente, a todos os males que hoje nos afligem. Desde a destruição do aparelho produtivo do país, cometida à sombra dos fundos da então CEE, até ao escândalo BPN, que hoje arrasa literalmente a vida de cada um de nós, Cavaco estará lá sempre. Como aquelas comichões nos olhos que nunca conseguiremos coçar com os cotovelos.
Tudo o que é corrupção, enriquecimento ilícito, acumular de dívidas, enfim, esquemas para defraudar o interesse público, vem sempre a cavalo no nome de alguém que um dia conviveu, dependeu, ou sucedeu a Cavaco.
O homem sempre argumentou que nunca teve nada a ver com isso. Mas também nunca renegou, na palavra e nos atos, essa gente que o apoiou e em que se apoiou na fase da sua ascensão ao poder. Ascensão que, diga-se, apesar deste recente milagre da ressurreição, não foi nada divina…
Cavaco é tão responsável como outros pela situação em que nos encontramos. Foi ele quem promulgou os sucessivos Orçamentos, do PS e do PSD. Foi ele quem, em nome duma estabilidade que nunca serviu para nada, promoveu o galope da injustiça e do empobrecimento que hoje entorpecem e dividem a nossa sociedade.
A sua “magistratura de influência”, apresentada como distanciada, só conseguiu mesmo foi afastar-se dos problemas reais das pessoas. Serviu de guarda-chuva a uma estratégia de transferência do poder, o qual foi passando encapotadamente da arena política para o recôndito dos gabinetes da economia. Por esta via, a “democracia” portuguesa, que sempre foi fraca, descambou numa “democratura” bem mais forte, na qual Cavaco representará para sempre a emblemática figura do santo das esmolinhas.
Esta atitude pretensamente superior do ressuscitado, a da “magistratura de influência”, apresentada como “inócua” e “equidistante” no prefácio de mais um dos seus Roteiros, encaixa às mil maravilhas na desresponsabilização de uma classe política que nos atraiçoou entusiasticamente até ao tutano.
A recente referência de Cavaco ao “cansaço” dos portugueses, no contexto em que o disse, é um exemplo do distanciamento deste presidente em relação à realidade. Com efeito, a pobreza trazida por uma austeridade muito mal conduzida não "cansa", antes agride a dignidade e as mínimas condições de vida desejadas para uma sociedade civilizada.
Nesta sua cruzada auto “legitimista”, Cavaco afirmou recentemente que «não é pelos baixos salários que se garante a competitividade da economia». Oh, hipocrisia suprema! Vinda da boca de quem mantém no poder um governo que insiste exatamente no contrário. Um governo que se agarra ao exemplo da Irlanda para sustentar tal ideia, sem dizer a ninguém que por lá o salário mínimo é mais do dobro do nosso.
Esquece Cavaco durante a sua missa, vá-se lá saber porquê, o caso da Islândia, que levou à barra dos tribunais os políticos que direta ou indiretamente estiveram envolvidos com o desastre económico do país. Islândia onde não se permitiu que fosse o poder económico a dominar sobre o poder político. Onde há democracia real. E onde a pobreza e a miséria se arriscam hoje a ser uma fugaz recordação do passado.
Cavaco, talvez por obra dos traumas que uma ressurreição há-de sempre acarretar, esquece tudo isto. Mesmo quando centenas de milhares de portugueses saem à rua, exatamente para recordar, também a ele, a hipocrisia e a iniquidade do sistema que nos governa e de que ele faz parte.
Nesta altura, em que se esboroa o evangelismo económico que o alcandorou ao poder, Cavaco não foi, estranhamente, capaz de emitir um “deixem-me influenciar”, em contraponto ao já velhinho “deixem-me trabalhar”. Quiçá porque pedir-se para trabalhar será hoje coisa inútil, uma vez que é o próprio trabalho que escasseia.
Reconheçamos, tentar influenciar Cavaco nem sequer seria possível. De facto não se pode pedir a um Redentor que se renda. Na verdade, se Cristo não se rendeu um dia pelas melhores razões, Cavaco nunca poderia render-se hoje, à falta delas, pelas piores.
Tenham um bom dia e até para a semana.
(crónica na rádio F dia 11 de março de 2013)