terça-feira, janeiro 01, 2013

Crónica na rádio F

Nos dias de hoje o que está a dar é ser-se burlão, aldrabão e vigarista.
O caso não é de hoje, nem de ontem. Atá já houve em tempos, não muito remotos,  um peditório nacional a favor da mulher do soldado desconhecido.
A ética não existe nesta canalha.
Eu disse ética, não disse moral porque são coisas bem diferentes.
É de ética que falo, ou seja do conjunto de normas que devem regular a atividade humana.
Para uns, profissionais da coisa considero-os burlões de primeira. Para eles será apenas uma forma de vida.
Para outros, oportunistas de circunstância, mais a modos que burlões de segunda, acontece porque teve de ser.
Para ambos, a ética é coisa que só atrapalha.
Vem tudo a propósito de recentemente termos sido confrontados com a história de um burlão de primeira, de seu nome Artur Baptista da Silva, mais um Silva, que se fez passar por «colaborador» das Nações Unidas e que, nessa qualidade, chegou a participar em programas televisivos de grande audiência.
Depois de desmascarado, esse burlão de primeira, com uma história pessoal recheada de crimes e trafulhices, visitante algo assíduo da cadeia, veio justificar-se com o argumento de ser, apesar de tudo, menos burlão que muitos outros.
Disparou direitinho sobre os burlões de segunda, invocando os 50 maiores devedores do BPN, culpados de terem na prática burlado o estado português, ou seja, todos nós, num montante equivalente a 1% do PIB.
Atirou também a matar sobre um outro grupo de burlões de segunda, isto é, aqueles que transferem capitais para paraísos fiscais, aproveitando depois as janelas de oportunidade, concedidas por um sistema corrupto, para, a troco do perdão do crime cometido, pagarem apenas uma taxa de 7,5% de imposto, um terço do valor pago por qualquer cidadão português cumpridor.
O problema é que o burlão de primeira está cheiinho de razão. Ele percebeu bem que a sua moral é diferente da moral dos burlões de segunda, acoitados no BPN, nos sucessivos governos, e em muitos outros lugares ou instituições do nosso país.
A moral deste burlão de primeira assenta no pressuposto de que ele rouba pouquinho a poucos, e apenas para sobreviver.
E ainda por cima gasta tudo o que rouba cá dentro.
Ao invés, a moral dos outros burlões, os de segunda, que são gente mais fina, fundamenta-se no princípio de que é legítimo roubar muito a muita gente, para o sistema conseguir sobreviver.
Para nossa desgraça, colocam a maioria do que roubam lá fora.
O burlão de primeira percebeu que tinha de roubar pouco e de fabricar engenhosamente uma qualquer legitimidade, que mais não seja por ter consciência que burlava sozinho e tinha o mundo inteiro contra si.
Esse burlão, que percebe melhor do que qualquer um de nós o que é a psicologia da vigarice, sabe que os outros, os do BPN e do governo, ao contrário, recebem a sua legitimidade de bandeja, por via das urnas.
E tem consciência que, protegendo-se religiosamente uns aos outros, nunca estão sozinhos quando roubam coletivamente o mundo inteiro.
Por isso quando ouço as diatribes de um Passos Coelho não consigo deixar de me lembrar da célebre frase proferida por um dos maiores burlões de todos os tempos, o ministro da propaganda nazi, Joseph Goebbels, de que uma mentira repetida mil vezes torna-se numa verdade.
Essa frase lapidar e histórica nunca foi tão verdadeira e tão perigosa como nos dias de hoje.
Vejam-se as duas comunicações que Passos Coelho fez pelo Natal.
De facto, vivemos tempos em que o nosso primeiro-ministro tem a lata de afirmar, à medida que a sociedade se desagrega e o país se afunda inexoravelmente, que «ainda não podemos declarar vitória sobre a crise, mas estamos muito mais perto de o conseguir».
Aliás, quando ouço inflamadas e patéticas declarações desse tipo, já não é só Goebbels que recordo, é o célebre ministro da propaganda de Saddam Hussein que garantia estar o Iraque a esmagar as tropas americanas às portas de Bagdad.
Ficou conhecido pelo nome de "Ali, o cómico", embora os iraquianos não lhe devam ter achado graça absolutamente nenhuma.
Perante um tempo destes, enxameado de burlões dos mais diversos tipos, na maioria dos casos enfadonhos e sem brilho, não consigo deixar de olhar para o nosso imaginativo burlão de primeira como uma espécie de Robin dos Bosques da vigarice, uma verdadeira luz na escuridão!
Acho mesmo que o seu percurso deveria ter direito, quiçá a tema de tese de algum mestre, um caso de estudo nas nossas escolas, para pelo menos reduzir um dia as probabilidades de continuarmos a ter nos sucessivos governos apenas burlões de segunda.
Uns burlões ecos de primeira sempre dariam mais colorido à coisa, demasiado acinzentada com Relvas e quejandos.
É que nos tempos que correm, em que temos como certo que hão-de ser sempre burlões a conduzir-nos, precisamos mesmo é de acreditar em algo que nos anime.
E o segredo está em sabermos retirar forças daquilo que só aparenta desgraça.
Pois bem, os portugueses podem começar a consolar-se com a ideia de sermos um dia governados apenas por burlões de primeira, os tais que roubam pouco e pelo menos gastam tudo cá dentro. É que sempre ganhava a nossa economia. E não é isso mesmo que um tal de Passos Coelho nos tem andado a prometer?
Já agora, a não perder por nada, mais um folhetim à moda do simplesmente Maria de há uns anos, desta vez ao vivo e a cores, nada de facebook a fazer por um senhor que por acaso também é Silva, mas Cavaco.
Dizem que é de Ano Novo.
Só se for para ele.
Até para o ano.
(Crónica na rádio F, dia 31 de dezembro de 2012)