sábado, outubro 27, 2012

Leituras

Pobreza e opulência

Com oportunidade, o "Jornal de Notícias" deu relevo, no passado dia 22, à preocupante situação de aumento do número de famílias em lista de espera no acesso às cantinas sociais. 
O assunto tornou-se relevante. 
Tomámos conhecimento da existência de 500 cantinas daquele tipo e o ministro Mota Soares anunciou a criação de mais 150 até ao final do ano.
O que significa sermos um país de cantinas sociais?
Não me cansarei de repetir que significa: um empobrecimento exponencial forçado; um vergonhoso retrocesso social e civilizacional; a degenerescência da democracia.
Também esta semana veio a público que largos milhares de milhões de euros disponibilizados pela troika, sobre os quais o povo paga juros elevados, estão ou no Banco de Portugal, ou em bancos privados a equilibrar rácios desses bancos, contribuindo para que os seus acionistas tenham lucros sempre a crescer. E falou-se da intenção do Governo em reduzir o IRC às empresas.
Quando na Inglaterra de Charles Dickens as classes possidentes prosperavam como nunca, nas fábricas, os homens, as mulheres e as crianças arrancados dos campos por força da expropriação da terra, sofriam em longas jornadas de trabalho pago com as côdeas da subsistência. Nas margens da sociedade os excluídos sobreviviam numa luta de todos contra todos, um dia de cada vez, sem esperança nem objetivo.
No século XX, o capitalismo selvagem foi forçado a concessões por força da luta dos trabalhadores e dos povos. Etapa a etapa foi-se construindo aquilo a que hoje chamamos Estado social: acesso à escola, à saúde, à proteção na velhice e no desemprego, como direitos universais, direito ao trabalho com consagração de direitos, liberdade de organização sindical.
Em Portugal, os mais velhos lembram-se bem, tenham ou não experimentado essas realidades, do gelo nos pés descalços (ou quase) nas manhãs de inverno, das longas migrações ou das praças de jorna. Quase acabamos com tudo isso depois de uma revolução democrática que os poderosos diziam ser impossível.
Agora paira a ameaça de tudo perdermos. O roubo organizado instalou-se no poder, hoje exercido pelo conluio corrupto, mas todo-poderoso, estabelecido entre os "grandes senhores" do financeiro e económico e os falsos políticos ao seu serviço.
Certamente por mero acaso, a Policia Judiciária perdeu quase metade dos seus efetivos, no espaço de pouco mais de um ano, enquanto prossegue a "crise" da justiça e o Estado de Direito é constantemente violado.
O CDS/PP vem fazendo de incomodado perante um Orçamento do Estado execrável, mas é um ministro seu que executa no dia a dia a demolição do Estado social. Nos intervalos, com toda a hipocrisia, preocupa-se com os "pobrezinhos". Esta semana apresentou mais um programa de cortes nos já escassos direitos dos idosos e dos desempregados.
O Governo sabe muito bem que o défice ou a dívida do país não resultaram dos gastos do Estado social. Mas, a pretexto da crise, quer destruí-lo. Com esta gente no poder jamais teremos uma rede de prestação de serviços públicos com qualidade e acesso universal a eles, como estabelece a Constituição.
O que estão a construir é uma "rede de proteção" prestadora de serviços pobres para pobres. Sopa em refeitórios sociais. Rendimentos mínimos paupérrimos e só para os pobres que passem por todas as humilhações de demonstração da sua condição. Subsídio de desemprego reduzido e para poucos. Pensões de reforma cada vez mais curtas e tardias. Trabalho barato e sem direitos e convite à emigração. Estudantes universitários perante o dilema de pagarem as propinas ou viver.
É preciso que exista sopa quente em último recurso e abrigo em caso de necessidade. Mas será isto o cerne do que queremos para a nossa sociedade? Será que, do outro lado, acabou a opulência?
Não! O que passou a haver, na era dos capitais que fogem para paraísos fiscais, foi, acima de tudo, uma partilha mais injusta do rendimento e da riqueza.
O espetáculo da pobreza no meio da opulência já é velho neste sistema capitalista. Agora está a ficar mais vivo e chocante.
Nenhum democrata deve condescender e ficar a assistir. O tempo é de ação para construir alternativas.

Crónica no Jornal de Notícias, 27 de Outubro de 2012.