terça-feira, junho 19, 2012

Como é tão fácil acreditar

Texto do Professor Galopim de Carvalho que o de Rerum Natura agradece.

(Crónica posta na boca de um antigo aluno do ensino especial, em finais dos anos 50 do século passado)



«Chamo-me Alexandre Herculano, exactamente como o grande escritor e historiador do século XIX e confesso que nunca li nada do que ele escreveu.
Comecei cedo a ganhar o pão que comia e o trabalho encheu todo o meu tempo. Tenho 66 anos e sou mestre numa oficina de reparação de automóveis. Faço de tudo, mas a minha especialidade era bate-chapas, arte que está a desaparecer porque o mercado é mesmo assim. Não olha aos problemas de cada um. Substitui-se o guarda-lamas amolgado por um novo, vindo da fábrica, e toma lá, paga, vai com Deus e quem se lixa são os muitos que ficam sem ganha-pão. Comecei a trabalhar aos 15 anos, como aprendiz, e tive sorte com o patrão. Pagava-me mal, mas deu-me cama, mesa, roupa lavada e uma profissão. Isso permitiu-me sair de casa, onde não recebi amor nem educação, e começar vida nova. Quando acabei a tropa já tinha modo de vida.
Voltei à mesma oficina, casei e também tive sorte nesta outra estrada da vida. Tenho dois filhos, já homens maduros, que me deram quatro netos que são o meu encanto. Vou trabalhar enquanto puder e faço questão de ver bisnetos. Sou bom português, respeito as leis e dou-me bem com toda a gente. Sou apenas isto, não mais do que isto e posso dizer que, tirando o meu tempo de criança, a vida não me foi madrasta. Como profissional devo muito ao meu patrão, o mesmo desde o primeiro dia. Também é verdade que lhe dei bom dinheiro a ganhar. Estamos quites.
Mas quem me ensinou a ser gente foi a minha professora da classe especial na escola primária do meu bairro. Foi ela que me abriu as portas da vida. Na altura, eu tinha 11 para 12 anos e ela era uma senhora na casa dos 25 ou 26 anos, mas mais parecia uma menina, bonita, alegre e bondosa como uma santa, mas firme. Foi uma luz que entrou na minha existência e na dos outros rapazes daquela classe, uns quinze, ao todo, cada um com os seus problemas. Uns bem comportados mas burros como uma porta, outros mal comportados como eu.
Eu era o pior de todos. Era o que se pode dizer, um “corrécio”, com castigos vindos de todo o lado, uns atrás dos outros, em casa, na escola e na polícia. Toda a gente me afastava ou se afastava de mim, uns porque me desprezavam, outros porque me temiam. Os meus amigos, ou melhor dizendo, os rapazes com quem andava, eram outros desgraçados como eu. Formávamos um bando de pequenos malfeitores caminhando a passos largos para a criminalidade. As prisões estão cheias de homens que foram rapazes que cresceram marginalizados como nós. Eu usava o cabelo cortado à escovinha, o que deixava ver as cicatrizes das pedradas que apanhei em guerras de rua com outros rapazes da mesma condição de abandono. Por isso, no grupo, eu era o “moças”. Fazíamos asneiras de toda a espécie e roubávamos o que estivesse ao alcance da mão.
De todos, só eu encontrei o caminho certo que fez de mim o homem que sou, e isso devo-o, repito, a esta minha professora e ao patrão que ainda hoje me dá emprego. Cresci pobre e sem carinho de mãe que se limitou a dar-me de comer e de dormir. Mas, nem sempre. Foram muitas as vezes que tive de me “desenrascar” para matar a fome, pedindo ou roubando. Sempre vesti roupas usadas que me davam e, sempre que a minha mãe precisava da minha cama para uma das amigas receber a visita de um cliente, eu ia dormir na escada, mal enrolado numa manta. Nunca conheci o meu pai mas conheci muitos homens que iam lá a casa. Alguns davam-me porrada, outros, mais simpáticos, davam-me uns tostões, o que me permitia comprar um bolo e, algumas vezes, cigarros “Provisórios” ou “Definitivos”, que eram os mais baratos e dos quais se vendiam um, dois ou três, conforme o dinheiro que a gente tivesse na mão.
Foi assim que cheguei aos 11 anos, reprovando ano após ano, fazendo gazeta, batendo nos colegas, atirando tinteiros aos professores, dando pontapés nas contínuas, dizendo palavrões. Foram muitas as vezes que a minha mãe foi chamada à escola e, nesses dias, depois dos castigos que lá me davam, já sabia que, quando chegasse a casa, levava uma sova de criar bicho e não jantava.
Quando esta nova professora chegou à minha escola, eu e uma porção de companheiros mal sabíamos ler e escrever e as contas eram uma dor de cabeça. Foi por isso que criaram ali uma classe especial e eu passei a ser um dos seus quinze “atrasados mentais”, como muitos diziam. Mas eu não era burro. O meu problema era odiar a escola e os professores, que me enchiam de reguadas e de outros mimos. Esta raiva que eu sentia e o meu mau comportamento não me deixavam aprender.
Com esta professora tudo mudou. Foram três anos que deram uma volta completa à minha vida. Passei a gostar de aprender e aprendi muito com ela. Passei a gostar da escola e era, quase sempre, o primeiro a chegar. E fazia questão de ir bem lavado e penteado. Um dia, estando eu a brincar com o meu companheiro de carteira, vi, pelo canto do olho, a professora ao meu lado e, de imediato, fiz aquele gesto automático de pôr o cotovelo à frente da cara para a proteger do tabefe do costume, mas em vez disso ela passou-me a mão pela cabeça, dizendo:
- Eu não bato em meninos. Nunca bati e não é agora que vou começar a bater.
Nunca esqueci este «eu não bato em meninos», nem o tom daquela voz, nem a festa que me fez na cabeça. Por muitos anos que eu viva não vou esquecer. Nunca ninguém me tratara assim. Nunca ninguém me chamara menino ou me fizera uma festa. Quando a gente falava a gritar ela dizia sempre:
- Não oiço nada. Só oiço quando se fala baixinho. E temos de andar como os gatos. Sem fazer barulho.
Quando um menino quiser ir à casa de banho, levanta-se, não precisa de pedir licença. Só precisa de não fazer barulho. Sai devagarinho e volta como saiu.
Um belo dia, o Milton, um alarve como eu, mais ou menos da minha idade e com uma história igualzinha à minha, danou-se por não conseguir fazer o trabalho que lhe tinha sido mandado e, esquecendo-se que estava na aula, largou um palavrão dos mais ordinários, que se ouviu em toda a sala. Ainda me lembro qual foi. Ficámos todos parados e calados, à espera da reacção da professora, reacção que recordo como se fosse hoje. No mesmo tom de voz de quem ensina, só disse:
- Eu conheço esse nome e muitos outros e sei escrevê-los todos. Quem os diz tem de os saber escrever. Anda, Milton, vai escrever no quadro isso que disseste.
Ele contava, depois, que nunca sentira tanta vergonha. Já o tínhamos escrito muitas vezes com carvão nas paredes da rua e feito desenhos a condizer, mas escrevê-lo ali na aula, à frente da professora, é que era mais custoso. Não teve outro remédio senão cumprir aquela ordem. Todos leram calados, só com os olhos, sem mexer a boca, e ninguém se riu. Mas a verdade é que nos serviu de lição. Nunca mais se disse uma obscenidade dentro da aula. Na nossa classe só um rapaz vivia numa família como devia ser. Era um franzino, muito magrinho e com pouca saúde. Todos os dias ia uma empregada levá-lo e buscá-lo. Ela é que lhe carregava a mala e o saquinho com o lanche. Quando, no recreio, ele começava a comer, a malta nem queria olhar. Eram só coisas boas. Carcaças com manteiga, fiambre, marmelada ou queijo, bananas e outras frutas. Ele, às vezes, repartia com um ou outro e nunca ninguém lhe fez mal. Todos o protegiam.
No último dia antes das férias do Natal, do ano em que a conhecemos, a Dona Aurora, assim se chamava, chegou à aula e, para nossa grande surpresa, trazia para cada um dos alunos, um pente desses de trazer no bolso, novinho em folha, e um frasquinho com água-de-colónia. A malta começou logo, mesmo ali, a pentear-se a perfumar-se e foi, então que ela disse:
- Assim, ainda gosto mais de vocês.
Foram muitos os dias que eu e mais uns dois ou três, igualmente pobres, íamos para a escola sem ter comido o que quer que fosse. Ela saía, mandava-me a mim, que era o mais matulão, ficar a tomar conta aula, ia a um serviço da tropa que havia ali ao lado e lá arranjava maneira de nos trazer de comer. No fim do primeiro dos meus três anos de classe especial, mercê da sua maneira de ensinar, do carinho que nos dava, a mim e aos outros, eu já lia no livro da terceira classe, já fazia contas e problemas. E os anos que se seguiram foram sempre a descobrir coisas novas.
Naquele ano houve as eleições em que o Humberto Delgado só não ganhou porque a trafulhice nas urnas foi muita. Ganhou o Américo Tomaz e ficou tudo na mesma. Durante a campanha os ânimos andavam exaltados e a polícia, quando era preciso, arriava forte e feio, fosse homem ou mulher. Neste estado de coisas, eu e mais dois ou três, dos mais grandalhões da aula, tínhamos medo que fizessem mal a esta nossa segunda mãe. Pendurávamo-nos num primeiro eléctrico que ela apanhava, ficávamos com ela na paragem, à espera de um segundo, que a levava casa, no Príncipe Real. Esperávamos na rua que ela assomasse à janela e nos fizesse adeus. Depois, correndo e à pendura, voltávamos ao bairro. A malta sentia-se no papel de guarda-costas e ai de quem lhe fizesse mal. Púnhamos-lhe as tripas ao sol.
Por duas vezes, uma em cada ano, levou-nos a visitar a Favorita, onde vimos fazer chocolates e outras guloseimas. Um dos donos da fábrica era seu conhecido e no final da visita dava a cada um de nós um saco com muito do que lá se fazia. Era uma festa a encher a barriga de coisas boas. No dia da primeira visita que fizemos, o director da Escola entrou na nossa aula, estava ela a explicar o que íamos ver e a dizer como nos tínhamos de comportar.
- A senhora vai sair com esta malta? – Começou por dizer aquele sacana que me encheu porrada em criança, numa voz que deu para ouvir.
- Nem sabe no que se vai meter!
- Sei muito bem. – Respondeu ela. - Fique descansado. Eu tomo a responsabilidade.
E lá fomos e voltámos todos, na maior, sem sobressaltos. Ela pagou os bilhetes dos que não tinham dinheiro para o transporte. Hoje eu sei, pelos meus netos que, nestas saídas, as crianças têm de apresentar um papel com a autorização dos pais e que se faz um seguro para o que der e vier. O que me parece bem. No meu tempo não havia esse cuidado. Mas felizmente nunca tivemos quaisquer problemas. Comportámo-nos igualmente bem nos dias em que visitámos a fábrica de bolachas da Nacional e quando fomos ao Jardim Zoológico. Neste dia, a professora conseguiu que o mesmo serviço da tropa arranjasse um farnel para cada um. Ainda me lembro do que vinha no saquinho que nos deram: Uma carcaça com manteiga e mortadela, outra com marmelada, meia dúzia de bolachas, uma maçã e uma garrafinha com um sumo. Grande professora! Foi o melhor dia em todos os anos de escola. Vimos a bicharada toda, corremos, cantámos e enchemos a barriga de coisas boas. Tudo na maior.
Um dia, terminada a aula, já na rua, a professora ia a caminho da paragem do eléctrico que a levava de volta a casa, e três ou quatro de nós, como de costume, uns metros atrás dela. Nesse tempo ainda havia padeiros, de cesta à cabeça, a distribuir pão, porta a porta, pelos fregueses. A dada altura, o raio do homem começou a meter-se com ela, e não te digo nada. Corremos o gajo à pedrada com as pedras soltas do passeio, que são sempre muitas, que ele pôs a cesta no chão e largou a fugir. Depois fomos nós que nos pirámos, mas só depois de gamarmos uma porção de carcaças
O texto foi retirado daqui. As nossas desculpas pela cópia.
Não era justo não o partilhar.
Será que a mensagem passou???
Atente-se nos «pormenores» da descrição mas, não se olvidem os «por maiores» e, desde logo o facto de «tudo isto» se ter passado na década de 50, do século passado.
Perceberam????
Um tal de Crato, que diz não reconhecer qualquer importância à pedagogia, entenderá, por mais ínfima que seja, a importância das várias aprendizagens em contexto dos afectos????
Por favor lei-se, com máxima urgência, um senhor chamado António Damásio!!
Leia-se, urgentemente.