quinta-feira, novembro 27, 2008

Saber viver é vender a alma ao diabo

Dia da cidade.
Cada vez mais se devia falar do dia do concelho e das suas gentes e menos no dia de uma cidade, qualquer que seja.
Há muito que as cronologias e os tempos deixaram de ser marcados por reis, príncipes, ditadores e outros que tais.
Quem marca o tempo e a mudança são as pessoas, é o colectivo que ainda se chama povo.
Vem tudo a propósito do texto e do contexto que procurei para tema desta lembrança – da Guarda.
Não venho falar dos milhões gastos na plataforma, nem dos milhares gastos com a iluminação do templo, que faz lembrar um campo de aviação, sem aviões, mas com muitos e muitos jactos de interesses;

Gosto dos que não sabem viver,
dos que se esquecem de comer a sopa
(Allez-vous bientôt manger votre soupe,
s... b... de marchand de nuages?»)
e embarcam na primeira nuvem
para um reino sem pressa e sem dever.

Não venho falar da hipocrisia dos dinheiros gastos nas acessibilidades, pois nem a «bandeirada» apaga a confrangedora situação das ruas, passeios, transportes e outros locais inacessíveis à generalidade dos cidadãos portadores de deficiência;

Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe,
transborda e escorre, já rio no chão,
e gosto de quem lhes segue o sonho
e lhes margina o rio com árvores de papel.

Não venho falar da arrogância, prepotência com que os vários poderes tratam os que não se conformam com a «situação» e se opõem democraticamente às ordens da maioria;

Gosto de Ofélia ao sabor da corrente.
Contigo é que me entendo,
piquena que te matas por amor
a cada novo e infeliz amor
e um dia morres mesmo
em «grande parva, que ele há tanto homem!»
(Dá Veloso-o-Frecheiro um grande grito?..)

Não venho falar das condições de vida dos que heroicamente, porque de heroísmo se trata, vão, teimosamente, insistindo e resistindo em ficar por terras da Guarda;

Depois, aparecem sempre os vendedores de ilusões,
Passarinheiros, também gosto de vocês!
Será isso viver, vender canários
que mais parecem sabonetes de limão,
vender fuliginosos passarocos emplumes?

Não venho falar da asfixia financeira, nem dos impostos municipais que todos os anos aumentam;

Mas senta aqui, mendigo:
vamos fazer um esparguete dos teus atacadores
e comê-lo como as pessoas educadas,
que não levantam o esparguete acima da cabeça
nem o chupam como você, seu irrecuperável!

Por que não põem cifrões em vez de cruzes
nos túmulos desses rapazes desembarcados p'ra morrer?

Não venho falar da FOME que já seca rostos e queima as veias dos que são despedidos das poucas empresas que existem; dos agricultores mortos nas valas da jeira que não produz; dos jovens que queimam ilusões e canudos na fogueira da inquisição dos saberes decrépitos;

Não venho falar! Não!
Falo-vos de outra gente.
Gente que por cá existe e sabe viver.
Ou seja, «saber viver é vender a alma ao diabo».
Hoje, agora e aqui, lembrei-me da tua poesia Alexandre O’ Neil.
Vá-se lá saber porquê?

Les portugueux...
não pensam noutra coisa
senão no arame, nos carcanhóis, na estilha,
nos pintores, nas aflitas,
no tojé, na grana, no tempero,
nos marcolinos, nas fanfas, no balúrdio e
... sont toujours gueux,
mas gosto deles só porque não querem
apanhar as nozes...

Dia da cidade, não é?
Pois então, que comece o foguetório, toque-se o hino que o almoço não espera.

Jorge Noutel
Deputado à Assembleia Municipal da Guarda pelo Bloco de Esquerda.

(Artigo publicado no Terras da Beira, de 26 de Novembro, a propósito do Dia da Cidade da Guarda)